Imitando Dante

  O QUÊ??? Que heresia é essa?!! Calma, calma! Mas sim!

Pra quem quiser se alongar, vai ter essa primeira parte sobre questões de imitação. Caso não queira, pule direto pra parte 2.

1. Sobre imitação em geral

Existem, por assim dizer, 3 tipos de imitação. Imitação do conteúdo, do estilo e da "forma" (não sei se é o termo exato, mas é o que usarei). Assim, por exemplo:

1.1- Imitação de conteúdo

ex.1) Dá pra pegar "Shrek 2", que é sobre um casamento indesejado pela família por questões econômico-sociais e contá-lo em outro estilo. 

- Dá pra contar como uma fábula de Esopo, e aí Shrek, Fiona e o rei, pra sintetizar o enredo, transformados então em 3 animais.

- Daria pra contar no estilo de Black Mirror, e aí, nesse caso, teria algum apetrecho futurista como mote pra dar a cola do episódio. Por exemplo: os descendentes passam a ficar presentes numa casa inteligente, conectada a todos os demais aparelhos da família. E aí se encaixa o enredo.

- No estilo de Shakespeare se tentaria compor a situação provavelmente como uma tragédia, então o desfecho já não daria certo. Ademais, pelo estilo de Shakespeare Shrek não poderia ser só um zé-mané. Então digamos que fosse o último descendente de um reino em decadência. E aí o enredo ganha raiz mais profunda, porque suas decisões geram efeitos nos povos sob a tutela desses reinados.

- Se fosse no estilo de Poe, a história ganharia um tom trágico e se colocaria em ênfase a ironia do rei, que revelaria ser (no Shrek, um sapo, ou seja, na mesma situação de Shrek) tão zé-mané quando o Shrek. No estilo do Poe, até onde conheço, não cabe uma solução feliz, então provavelmente teria que adaptar pra algo como o rei morrer pra tentar esconder seu segredo, que vai persegui-lo até o fim.

E assim sucessivamente.

Por tabela, deve dar pra entender melhor o que é imitar por estilo.

1.2- Imitação de estilo

Imitar o estilo implica compor novas histórias a partir do estilo tal como se captou desde fora. Assim, por exemplo, 

ex.1) os filmes de faroeste como "Da terra nascem os homens" ou "o dólar furado". 

Esse estilo de faroeste teve o estilo muito imitado. Daí dá pra fazer uma comparação.

- Nem que a vaca tussa: animação infantil, centrado em ser um musical. Então até o vilão consegue o que quer através do canto. E a solução do problema tem a ver também com uma péssima capacidade de canto de um dos personagens.

- Um pistoleiro chamado Papaco: eu realmente não assisti, mas é uma versão brasileira de pornochanchada no estilo faroeste americano.

- Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. Basicamente substitui os pistoleiros por cangaceiros e a disputa com a polícia.

- Yojimbo, de Akira Kurosawa. Basicamente substitui os pistoleiros pela disputa de um samurai que fica entre duas gangues que disputam uma cidade.


Eu vou resumir, até porque não assisti Yojimbo ainda (mas quero), só conheço por cima, e o de Glauber Rocha assisti, mas faz tempo.


Em resumo: todos esses 4 filmes são imitações do estilo faroeste, e isso é bastante visível. Mas nenhum deles é uma recomposição do motivo que gerou o faroeste. Falo disso depois.

1) Percebam que o do pistoleiro Papaco literalmente só fez copiar o estilo externo americano sem nenhuma adaptação, exceto pelas necessárias pra incluir a pornochanchada.

2) Nem que a vaca tussa encaixa a narrativa em algo americano, com o tema ligado aos ranchos. mas também só tem unidade no próprio enredo, que é com foco em música.

3) Glauber Rocha e Akira Kurosawa ambos fazem adaptações no estilo. É claramente uma inspiração direta, mas ele é adaptado a uma realidade local. Em relação aos outros dois, esteticamente vão ser, obviamente, muito mais bem-feitos. Mas ainda tem um "x" que falta.


De igual modo,

 ex.2) o estilo do Poe, o estilo de Dante, de Camões, facilmente se transformam em outra coisa. 

Com o primeiro, surge um Tim Burton, que imita o estilo trágico.

De Dante, Petrarca ou Camões surge um Tomás Antônio Gonzaga, que concretiza a imagem da donzela amada. Algo se perde nessa transição, mas é ainda imitação de alto nível. Mas daí para o romantismo e os dramas com a donzela amada que não se apresenta ou que está morta, sem o viés espiritual do Poe, é uma perda muito maior do que realmente estava sendo expresso ali. Nada disso transparece, e, normalmente um estilo complexo se quebra no tempo e gera esses estilos secundários. Assim, não seria estranho dizer que o movimento gótico e emo surgiram da mesma fonte que um Tim Burton, leia-se, essa inspiração vinda do lado trágico do romantismo, que Poe representa. Poe, por sua vez. vem dessas imagens elevadas desses primeiros três poetas mencionados.

Mas isso não é imitação da forma. Vamos a ela.


1.3- Imitação da forma

Imitação da forma implica, independentemente de conteúdo e estilo, tentar imaginar o que gerou aquela produção. Qual é a "cola" que gera aquele estilo e aquelas obras. Assim, nos exemplos citados, 

1) o faroeste parece ser um período histórico determinado dos EUA ligado a essa divisão entre os estados do Sul e os do Norte. Parece que é a Guerra de Secessão, em meados do século XIX. O faroeste se encaixa nas complicações sociais nascidas após essas guerras, no período de desconfianças e ataques menores entre os estados do sul e do norte, o que gerou um prato cheio de conflitos humanos até adquirir uma maior estabilidade.

Daí, por exemplo, no contexto contemporâneo, se fosse pra imitar a forma do faroeste, se assistiria os filmes para pensar em como desse conflito nasceram os dramas, e como a solução dos dramas se relaciona com o conflito. No caso contemporâneo, eu chutaria a circunstância da "polarização do país", que é, também, um prato cheio de conflitos sociais. Estudar o faroeste pela forma não implica compor histórias de bangue-bangue, mas, vendo as soluções de lá, ter uma base comparativa para pensar em como ocorrem as soluções daqui. Isso abre vários insights.


Não vou abrir pros outros exemplos, porque de certo modo já foi mais ou mesmo aberto. Considerando que existe um "x" a ser expresso, Camões, Dante ou Petarca atingem o ápice; Poe vai um pouco mais baixo, ao não conseguir descrever o que é esse "x", mas sim a falta dele; Thomas Gonzaga descreve não o "x", mas algo similar ao "x", e assim sucessivamente. Pela intenção deles, o mais próximo que vi sendo expresso contemporaneamente é o filme "O show de Truman". O "x" está lá. Se você entendê-lo no show de Truman, vai entender nos demais.


2.Imitando Dante pela forma

Ps.: eu não terminei de estudar a divina comédia, ainda estou no inferno. Então vamos só pegar o inferno e uma visão geral.


1º: Pense na coisa mais importante que você conhece. Eu que não vou dar spoiler, tem que ser a sua própria, o seu achado. Lembre que o primeiro mandamento cristão é "amar a Deus sobre todas as coisas". Então você precisa em primeiro lugar meditar que coisa é essa, que "x" é esse que estaria acima de todas as coisas.

Bom, achou?

2º: Agora eu quero que você comece a pensar e pesquisar no seu dia a dia tudo aquilo que impede uma pessoa de chegar nesse "x". Quais são as circunstâncias, problemas, desculpas que as pessoas encontram? Como essas coisas impedem de chegar a esse "x"? Realmente imagine, colete, organize.

3º: Agora você vai pensar hierarquicamente. Qual impede mais e qual impede menos? E pense também no motivo. Tem que ficar claro pra você isso.

Se você achou o "x", achou o que impede de chegar no "x" e achou a hierarquia desse impedimento, de modo a entender o que mais impede e o que impede menos, pronto, você já tem a matéria para a sua divina comédia.

Agora vamos ao nosso passeio.

As 3 zonas em que se passam a divina comédia implica em ver o resultado após a morte. Ora, na primeira é uma visão dessa hierarquia quando o sujeito morreu sem saber que havia um "x" a ser encontrado; na segunda é uma visão de quando ele morre sem ter atingido o "x", mas ele entendeu em vida que não tinha conseguido; na terceira, apesar de eu não ter lido ainda, eu suspeito que será a descrição, uai, do "x", os aspectos do "x". Se já tem o "x", já tá perfeito, mas ele também tem aspectos e uma visão total.

A coisa se passa de modo moral, porque para achar o "x" é preciso tomar a decisão de buscá-lo e purificar os motivos que se encontrou que impedem de achá-lo.


Isso vai te fazer um Dante? NO!

Dante, Dante mesmo precisa de mais do que isso. Existe um outro poema, chamado "Romance da rosa", que é basicamente essa mesma forma. A diferença de um pra outro é que Dante usa:

1- o sistema cosmológico da época como modelo para as 3 zonas

2- a literatura como recurso mnemônico, criando, de bônus, uma interpretação geral do mundo antigo

3- o simbolismo do 3


No fundo, se você conseguiu imitar a forma, não é difícil adquirir os equivalentes a esses 3 pontos, o estilo virá daí. Mas, obviamente, não vai ser da noite pro dia. Você vai ter que realmente ler pra cacete e meditar pra cacete pra ajustar o verniz da obra e torná-la a obra-prima do século XXI.

Esses 3 pontos de acréscimo fazem a obra ganhar, além do poder absurdo no conteúdo e na forma, uma imagem de "necessariedade". É "necessário" que a vida seja mesmo assim, porque no mundo de Dante cabem a visão do mundo natural, a visão do mundo cultural e a visão simbólica do mundo.

Quem quiser entrar nessas nuâncias para compor a obra-prima pode ter uma imagem de como fazer isso lendo História do Diabo de Vilém Flusser. É basicamente uma tentativa de imitação da forma de Dante usando como recurso a cosmologia contemporânea.


Ps.: 

"como você sabe dessas coisas?"
- Uai, porque eu recebi uma sacada de uma história que imita a forma de Dante.

"Vai contar?"


Bônus: "E Shakespeare?"

Eu não li tudo, mas uma sacada que pode ser útil é imaginar esse mesmo "x" de Dante, essa mesma hierarquia elaborada, e... uai, cada tópico vai ser o mote de uma tragédia. Pra ser Shakespeare, esse mote tem que ser plenamente trabalhado até a exaustão, ou seja, cada personagem está ali pra reforçar um aspecto do mote. Daí você criaria uma coleção de tragédias cuja unidade é a busca pelo "x".

That's all, folks!



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