tratado de filosofia [rascunho incompleto]
Tratado de Filosofia
É relevante mencionar que este tratado está sendo escrito após o tratado de inteligência, apesar de eu tê-lo colocado, na sequência própria dos tratados, após tratado da cultura e tratado de estética. É que a sequência dos tratados segue o que imaginei como um plano de desenvolvimento da capacidade intelectiva, mas a produção desses tratados, apesar de ser da minha intenção que eles sejam autônomos, de minha parte, requer colocar as coisas num plano levemente mais objetivo, se assim posso dizer. Dito isso, apesar de falar de objetividade, primeiramente é preciso desenvolver a capacidade individual de pensar objetivamente; depois é possível descrever de cima para baixo a partir da estrutura mesmo do conhecimento em suas variantes. Óbvio que é só um plano geral, mas, imagino eu, primeiro vem a filosofia enquanto definição do campo da descrição humana (objetividade aqui inclui a inteligência humana), depois a religião, depois a cultura, depois a estética. Não sei se será este o trajeto da escrita, mas veremos.
Antes de mais nada, é preciso dar uma definição do objeto que estou chamando de Filosofia. Digo que é o esforço humano de compreender as coisas conforme o ápice da Inteligência (e aí vale a pena ver o tratado correspondente). Todo esforço de compreensão traz em si o embrião da Filosofia: a curiosidade fecundada pelo insight, como veremos. Conforme o indivíduo, esse esforço pode ir desde (1) a tentativa de organizar sua vida enquanto jovem, (2) um esforço por dar sentido à vida enquanto adulto, (3) uma meditação profunda da própria vida, (4) a percepção do próprio ato de poder meditar a própria vida, e meditar sobre o ato, (5) expandir a compreensão sobre o ato (e para isso usar os registros, dentre os quais os melhores são os filosóficos). Como veremos, eu ilustrei com o caso da própria vida, mas essa escalada pode ser aplicada também a outros objetos. Imagine-se, por exemplo, a diferença entre um depósito com livros e uma biblioteca, organizada sendo a CDD ou CDU, e o próprio ato de meditar sobre como organizar essa biblioteca, podendo gerar novos meios de ordenação. Nessa escala se encontra a ascensão da inteligência: Filosofia é o ponto que se atinge sobretudo a partir de 4. Às pessoas de 1 chamamos de focadas, às de 2 de maduras, às de 3 de sábias; às pessoas de 4 são como as sábias, e em geral a distinção não passa tão perceptivelmente para termos palavras, às de 5 são as que chamamos de filósofas.
É possível ser filósofo com uma vida desordenada ou ter ideias filosóficas ainda que pouco abrangentes; daí se distinguirá o grau de abrangência nos temas e na compreensão de um filósofo. O tempo costuma fazer justiça nessas coisas, mas isso não significa que todo o passado histórico já está devidamente medido, menos ainda o presente: de tantos documentos e confusões já acumuladas, o mais provável é que se imaginarmos daqui a 2000 anos com toda a documentação a mais legada, sobretudo nessa nossa época de informação que não deve passar, a própria noção de autoria e autoridade deve se dissipar e a compreensão do mundo se formalizará mais e mais para evitar ter que estudar milhares de anos de confusões históricas que poderão muito bem ser evitadas ao se ter as perguntas, as respostas e as questões gerais de onde vieram.
Isso gera a tentação de imaginar um tal Fim da filosofia. Isso parte de alguns pressupostos que só alguém da elite e sem contato com as demais classes pode ter: a de que é possível ter uma cosmovisão plenamente homogênea para todo mundo; mesmo se fosse possível ter todas as respostas para todas as perguntas, mesmo com a escolarização para tentar expandir ao máximo, existe o fator sempiterno da eficiência. Assim como nas máquinas de calor, também na ação não conseguimos 100% de eficiência: todo professor sabe disso, e quem descobrir que entre a população, mesmo numa época de prestígio das ciências, ainda existe muita gente que acredita na geração espontânea de insetos e seres miúdos, ficará talvez com um pé mias próximo da realidade. Mas isso é tema do tratado de cultura. O que interessa aqui é que não se espalha homogeneamente de cima para baixo as ideias, e nem, ainda que as espalhe, elas permanecem com as mesmas feições. Quem avaliar qualquer religião, qualquer idioma, verá os "dialetos", que tendem a se tornar novas línguas por si mesmas. Mas admito que a tecnologia da informação, somada às IAs, pode gerar novos panoramas, mas isso também é algo para o tratado de cultura.
Seja como for, a palavra Fim é ambígua: implica a intenção implícita que guia o ato e um momento do tempo em que o ato se perfaz. No primeiro sentido, o fim está na própria definição do termo, e é uma constante de todas as épocas: o esforço humano de pensar e compreender com o ápice da inteligência. No segundo, só é possível dizê-lo com pouca imaginação, porque as grandes navegações do século XVI já poderiam facilmente servir de ponte para revelar a imensidão de questões e problemas gerados por todo o novo mundo que estava pela frente. Hoje, como no século XVI, mapeamos ainda timidamente o vasto mundo para além da exosfera que recobre a Terra. Como o Céu das Estrelas Fixas, de repente revelou-se ali como um véu fora do qual havia ainda mais terreno a ser desvendado. Como há quem duvide de que saímos mesmo da Terra, vou levar em conta as 2 hipóteses: na hipótese de só termos a Terra, ainda assim o avanço das tecnologias e do espalhamento de informação traz consigo confusões monstruosas, do qual o "escândalo das fake news" é só uma imagem: no fundo sempre ocorreu, mas nunca na escala que a tecnologia permite tanto fazer quanto averiguar. Essa confusão de informações não pode ser barrada, porque só seria possível se todos os censores fossem filósofos, e via de regra o desejo de ser censor é oposto ao de ser filósofo. Então uma parte será censurada, enquanto outra permanecerá em confusões crescentes. Assim, os filósofos e o embrião da filosofia permanecerão sempre necessários. Se, por outro lado, pudermos viajar pelo espaço, temos ainda séculos e séculos, talvez milênios de esforço por novas colonizações, novos espalhamentos, novos problemas, novas tecnologias, as tentativas de abreviar a distância entre as várias colônias, os dramas familiares etc. etc. Muita literatura, muita arte, muita documentação e muita filosofia ainda precisam ser produzidas na tentativa de achar de volta a compreensão de conjunto. Nem falo aqui das implicações religiosas, que, via de regra, precisam revelar suas camadas mais e mais abstratas para se manter, a possibilidade de vida e vida inteligente fora da Terra etc.. Tudo isso entrará no mapa do conhecível e, portanto, da busca pela compreensão. Mesmo que ocorram tragédias colossais, se sobrar um último homem vivo e nele se mantiver a curiosidade fecundada pelo insight, lá ainda estará a Filosofia., se não em seu pleno potencial, ao menos em forma embrionária, em promessa. Lá estará o símbolo, e lá estará as mãos erguidas ao Alto à espera do Sentido unificante.
Mas, por que não, para dar um gostinho do que falarei no tratado da cultura e mesmo no último capítulo deste tratado, existe um Fim da Filosofia no segundo sentido abordado. É quando ocorre (ou será quando ocorrer) o fim da Humanidade. Isso vale nos dois sentidos da palavra: a morte do último homem ou a morte da humanidade no último homem. Sempre imaginamos, como em Aldous Huxley, que haverá sobras de humanidade quando isso ocorresse; em geral, isoladas do resto da população já não mais humana. Essas sobras podem estar vivas, em algum lugar, ou podem ter sido arrebatadas (em sentido religioso ou não, se é que me entendem!). Seja como for, no fim da humanidade, certamente o mundo seguirá feliz, porque é só no humano que existe a constante da insatisfação consciente, facilmente levada a dimensões sociológicas e mesmo abstratas. Não sei se, como ou quando ocorrerá, mas, se ocorrer, não há mais sentido para a Filosofia. Na verdade, não haverá mais sequer Sentido. Então nada importará mais. Nem Bem nem Mal, nem Verdade nem Mentira, nem Belo nem Feio. Que assim não seja.
É preciso dizer, antes de mais nada, que este tratado não cobrirá tudo nem com o máximo de fidedignidade, pela minha idade e capacidade. Minha aposta, porém, é que a chave do insight permite construir técnicas que pelo menos ajudem ao leitor a tomar posse mais pessoal do que lhe vier de interesse no estudo dos temas filosóficos (e culturais). Dito isso, principiemos o tratado da filosofia pelo ponto de vista do insight.
1.Conhecimento Total
1.Conhecimento Total
Um passo essencial para poder falar de filosofia é a confiança na existência do conhecimento total. Trata-se da confiança de que todos os conhecimentos possíveis existem de uma maneira unificada. É algo óbvio, mas ironicamente difícil de tomar consciência efetiva.
Tomemos primeiro uma área de conhecimento para tentar ilustrar o fenômeno. Toda ciência tenta descrever um conjunto de fenômenos a partir de um certo ponto de vista. Dessa descrição, é possível inclusive prever o futuro, conforme suas limitações. Isso ocorre mesmo com as mais simples captações culturais de causa e efeito. Assim, por exemplo, eu sei que botar a mão no fogo trará queimaduras (a frase pode ser expandida e detalhada em mil aspectos diferentes, mas peguemos a ideia geral) conforme o tempo de exposição. Se eu sei disso, e lembro bem, essa regra é, por assim dizer, uma regra fixa e firme. Esse conhecimento expressa algo dos fatos. Do mesmo modo, se estudo a termodinâmica - a diferença é o grau de abrangência dos fenômenos: se percebo apenas o caso particular do fogo, provavelmente posso tomar como uma regra geral em relação ao fogo e até mesmo ao calor em geral, mas não tenho recursos para expandir a graus maiores de abstração, a ponto de pensar sobre o calor em si mesmo, como se gera, quais os seus efeitos, o que é a combustão, as implicações da variação de temperatura focalizada e no ambiente etc.. Algo disso está embutido implicita e intuitivamente na versão simples do raciocínio, mas a ciência constrói as ferramentas e a linguagem para captar o fenômeno em seus detalhes.
Do mesmo modo, eu posso perceber que pessoas com olheiras não devem dormir bem, que não dormir bem pode ser causado por certos tipos de problema, fisiológicos, sociológicos, psicológicos, e aprofundá-los, seja na questão das olheiras, seja nos problemas que as geraram. Tudo isso, também, precisa apontar para fatos fixos. O conhecimento pode evoluir no tempo, mas a relação causal que foi captada, não.
Por fim, as misturas químicas através da teoria atômica, bem como as medições permitidas pelas equações físicas. O fato das misturas darem certo conforme ocorrido, bem como o fato da previsão ocorrida de acordo com as fórmulas, pensadas por homens, é o que gera a expectativa de que há uma Verdade nesses conhecimentos. Muda o conhecimento, é claro. A física de Ptolomeu só foi aceita por tanto tempo porque permitia prever os fenômenos celestes com precisão suficiente. Mas, conforme o desenvolvimento tecnológico, novos observatórios e uma somatória de observações, como as de Tycho Brahe, somadas às hipóteses de Copérnico e ao prolongamento do trabalho com Kepler, o modelo astronômico muda. E assim seguem as novas sínteses, como a de Newton. Por fim, por cerca de 200 anos a síntese funcionou, até que, novamente, pelo avanço tecnológico e das observações, a teoria rompeu-se e deu origem a pelo menos dois novos escopos de investigação: um para o celeste, com a mecânica relativística, outro para o subatômico, com a mecânica quântica; sob a responsabilidade inicial de Einstein e Planck, respectivamente. Ora, só é possível falar em um progresso e avanço da física - e das ciências - por dois únicos fatores: primeiro porque o mundo permanece constante; segundo porque a previsão verdadeira dos efeitos dadas pelos conhecimentos demonstra que existe veracidade neles. Em outras palavras: se a natureza não fosse uma unidade firme, não seria possível ter conhecimento dela; se por outro lado o conhecimento firme dela não fosse possível, não teríamos como prever fatos futuros. A imprecisão e a ineficiência são as brechas que buscamos preencher e, nesse processo, rearticulamos os conhecimentos. Ainda assim, há precisão, há eficiência. Portanto há conhecimento e há fixidez da natureza.
Com esses exemplos, tanto os populares, quanto os laboratoriais, eu quero ilustrar o seguinte princípio: todos os conhecimentos, por mais primários que sejam, são ícones (símbolos) que apontam para um mesmo fato: a unidade da existência. Em outras palavras: as leis da física e da química buscam a descrição do princípio da matéria e do movimento. Só é possível essa busca porque existe, de fato, uma versão verdadeira e final, da qual a que temos é uma aproximação que revela sua existência. Agora, imagine que fosse possível chegar a essa versão perfeita (digamos que seja possível daqui a uns 10.000 anos): significa que toda a matéria e todo o movimento, tudo o que aconteceu, só pode acontecer porque essas regras naturais existiram desde o princípio. Some a isso todos os conhecimentos de causalidades - todas as ciências existentes e possíveis - elevadas ao mais alto grau de pureza e perfeição: este conhecimento perfeito é precisamente o terreno em que toda a existência pôde acontecer. Ou seja, tudo o que acontece necessariamente só pode acontecer dentro do terreno dessas leis. Isso não remove o arbítrio, seja o primitivo dos seres do reino vegetal, os livres do reino animal, e os conscientes, a humanidade (e possíveis outros seres ao lado ou acima de nós), mas revela o terreno onde absolutamente nada pode contrariar. Tudo segue essas leis, mesmo as supostas revoltas estão dentro delas.
A essa unidade, que o conhecimento total revelaria, e que precede, portanto, não só o conhecimento como a própria existência concreta, podemos chamar de Causa Primeira. Isso será mais discutido no tópico 5, de dialética atemporal, temporal e eterna. Aqui basta dizer que trata-se, afinal, do mesmo princípio utilizado pelos antigos, mas traduzidos em linguagem contemporânea. Porque para tudo o que existe possa vir a existir, precisa obedecer a certas regras. É possível colocar a discussão de "quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?" mas, pela própria natureza etérea do conhecimento, em oposição a ação material, necessariamente ele preexiste e subsiste a qualquer matéria. Antes que todas as coisas fossem, era preciso que ele fosse. Não o conhecimento verbal que temos das coisas, mas as leis gerais para onde ele aponta.
Há dois questionamentos válidos. Um é posto pelo meu professor Olavo de Carvalho. Para defender a hipótese de que o mundo não está necessariamente rumando para o aumento irreversível de entropia, como se generaliza da 2ª lei da termodinâmica, e para encaixar a situação de milagres cristãos, ele postula a possibilidade de que as leis do conhecimento científico apontem não para leis eternas e imutáveis, mas para hábitos da natureza, que podem mudar, mas tendem a manter sua regularidade. O segundo é posto, até onde tenho conhecimento, pela divulgação científica, ao falar sobre as hipóteses de mundos possíveis que talvez coexistam e tenham leis distintas da nossa. Um terceiro tipo de questionamento, colocado sobre a possibilidade do conhecimento humano ter validade, está fora deste escopo e será tratado no tópico x sobre solipsismo.
Eu estou longe de poder tratar da questão de entropia, e com exceção de uma noção geral da física, tem a ilustração pelo conto do Isaac Asimov, cientista e literato, "The last question". Mas a ideia geral do Olavo, cujas fontes também não conheço, é de que ainda que o universo tenda ao desgaste e resfriamento, Deus pode infundir mais matéria conforme Sua vontade. Ao mesmo tempo, assim como Ele poderia quebrar essa regra, também poderia quebrar outras. Isso é simbolizado tanto pela sarça ardente do judaísmo como pela ressurreição de Lázaro. Ambos os casos são literalmente a representação da quebra da irreversibilidade entrópica. Idem, o milagre dos corpos incorruptos de santos. Eu não tenho dados suficientes para falar sobre milagres, mas eles representam a reversibilidade em um sistema fechado: só posso ir até o ponto de usá-los como símbolos que também revelam o funcionamento da inteligência. Mas isso fica para o tratado da religião. Ao mesmo tempo, é nesse mesmo entendimento de colocar a natureza como mutável, ainda que só em ocasiões de exceção, com que Olavo explica o milagre do Sol de Fátima, onde estima-se que cem mil pessoas viram em simultâneo o Sol reagir como se fosse um brinquedo no céu, rompendo totalmente as leis esperadas do movimento planetário (seja nosso ou do Sol), e cuja prova material teria sido a secagem total dos presentes, mesmo após passarem por uma chuva torrencial. As interpretações naturais que conheço vão desde a busca por explicar o fenômeno (pela circunstância do parélio, por exemplo) até a colocar o caso como delírio coletivo. Seja como for, com ou sem milagre, com ou sem uma explicação de causas materiais suficientes, no fenômeno externo ou interno, com ou sem a explicação do fator de ter ocorrido exatamente naquele instante, o fato é que tudo isso entra dentro da possibilidade da mudança parcial nas leis naturais, mas, ainda que ocorram, apenas revelam leis ainda mais fundas, nas quais as observadas pertencem. Do mesmo modo que as leis de Ptolomeu, acreditadas por todos, eventualmente revelaram ter brechas. Isso Olavo também confirmaria, segundo entendo.
No segundo caso, a possibilidade de mundos possíveis que coexistam é algo mais complicado. Tenho ainda menos dados concretos sobre isso, até porque partem de cálculos abstratos, apesar de serem espalhados como imagens e narrativas de ficção - o eu de anti-matéria, a viagem entre os vários mundos etc.. Imagino que partam de alguma explicação de fenômenos ligados à buracos negros e/ou à relação entre anti-matéria e surgimento de matéria. Para explicar certos processos, postula-se um universo possível que entre em consonância com este e ocorra a troca de matérias. Daí se relacionam como sistemas físicos, ou seja, como se eu tivesse dois recipientes fechados, mas que interagissem entre si por um cano e trocassem matéria conforme certas circunstâncias. Seja como for, ainda que leve tempo, se existe, se é possível postular, é possível chegar a um conhecimento definitivo que, como no caso anterior, apenas ampliaria o escopo das leis disponíveis até o momento. É preciso pensar em termos de cem, centenas, milhares de anos.
Assim, independentemente até das exceções que conhecemos, também elas podem ser postuladas dentro da hipótese do conhecimento total, ou causa primeira. É nele que vivemos e tudo o mais que conhecemos e não conhecemos existe. Esse território abstrato, que é ao mesmo tempo o lugar de onde extraímos nossos conhecimentos, e de onde todas as coisas são possíveis de existir e mudar, é propriamente o terreno filosófico. Esse território, por sua vez, apesar de ser homogêneo, horizontal, para o nosso pensamento é vertical. Podemos conhecer desde a regra da mão no fogo até a calorimetria, as leis gerais da termodinâmica, o funcionamento do universo e as leis gerais da lógica por onde todas as demais obedecem, assim também podemos falar de verticalidade conforme a ascensão da inteligência nos seus degraus. Nada impede que uma pessoa simples aprenda na escola as leis da termodinâmica, mas para tomar posse desse conhecimento com suas implicações e no nível com que ele realmente é produzido (a escola é a versão simplificada) é preciso uma dedicação imensamente maior, e a passagem de certas abdicações pessoais para dedicar-se a isso. Podemos dizer que o cientista passa por um processo ascético, ainda que em menor escala do que o filósofo (areté), o místico ou santo.
Esse território abstrato que descrevi, como será mostrado depois, é o terreno próprio do Ser das coisas, isto é, dessa descrição do conhecimento que é ao mesmo tempo o ícone que revela a fórmula que permite que as coisas se comportem como se comportam. Em outras palavras, o conhecimento, tomado com essa ênfase, é o que Aristóteles chama de "conhecimento pelas causas". É dele que parte toda a noção causal, desde primitivamente a tentativa de descobrir como o predador ou os demais seres se comportam, para sobrevivermos melhor e por mais tempo, até, popularmente, conhecer como as pessoas agem para lidar melhor com elas, como funciona a sociedade, como funciona o mundo, em graus cada vez mais abstratos e completos, passando do conhecimento comum ao legado de conhecimentos da ciência, para chegar, afinal, na meditação filosófica dessa soma de conhecimentos, conforme a abrangência a que se decidiu dedicar-se. A diferença entre os conhecimentos comuns ou científicos e o conhecimento filosófico é os graus de encaixe e abrangência, portanto de compreensão que eles permitem trazer. Isso será discutido no tópico x, pensamento comum e pensamento conscientemente categorizado.
Antes de tratarmos mais precisamente sobre o Ser, e lhe dar uma definição mais centrada, é preciso passarmos por dois estágios: primeiro o da ascensão da inteligência, depois, o da sua potencialidade "inata" pelo princípio da analogia. Vamos a eles.
2- O insight aplicado à Filosofia
2- O insight aplicado à Filosofia
Prometi que este seria um manual focado no insight. Todos os tratados têm no insight o seu centro, porque é só dessa ideia capaz de quebrar o sistema esperado das nossas ideias que nos garante a ascensão de um estado a outro de compreensão das coisas. Se não houvesse, teríamos apenas a somatória dos sentidos sem, pela intuição, a capacidade de perceber unidade e permanência e, sem o insight, de, acrescido a isso, perceber significado e abstração.
Um dos pontos destes tratados é mostrar que a Filosofia está em germe em toda a possibilidade de conhecimento, e que é o insight, portanto, que a revela. É o que tentarei mostrar neste e no próximo tópico. Acima da Filosofia existe apenas o próprio insight, sem o qual, portanto, ela não existiria. Insights de altíssimo nível abstrativo podem nascer e que pode brotar na forma de Revelação, isso é tema no tratado de religião. Vamos à revelação da Filosofia no conhecimento.
Posso dizer que há 4 portas principais para a Filosofia. São elas: I) as artes e a técnica em geral, II) a busca por uma "filosofia de vida", III) a ordenação após excesso de curiosidade, IV) a mística. As três primeiras dizem respeito à posse ativa da razão humana pela cultura, digamos, "profana"; a quarta é um processo de transformação que envolve menos a razão e mais o insight puro. A quarta será tratada especialmente no tratado de religião. Neste, focarei nas três primeiras.
A primeira delas diz respeito à produção em geral, mas começaremos pelas artes. É tradicional falar sobre as musas das artes, e a inspiração presente nelas, seja representada por musas, seja por espíritos ou outras forças. Apesar dos artistas, sobretudo modernamente, quererem se ver como autônomos, é inevitável a presença da inspiração geradora dos novos produtos. Aaron Copland fala sobre a inspiração comparando os modelos de Schubert, de produção mais imediata, para o de Beethoven, de produção mais lógica e demorada. Ainda assim, existe a inspiração, o surgimento de um motivo que será então trabalhado pela técnica. Ora, mas a própria aquisição da técnica até o estado presente passa por estalos sucessivos de "entendi! É isso!" e de composições anteriores, por sua vez brotadas também de um mote vindo do insight, mais ou menos ativo. Como o insight em si mesmo, é um terreno ambíguo o que ocupa o processo de produção, o que faz com que um música como Stravinsky, nas suas "Poética musical em 6 lições", passar em pouco tempo da posição de não admitir nenhuma inspiração para admitir que ela existe como o começo do processo. O mesmo vale para as demais artes. Também a composição dos tratados veio de um momento de inspiração: eu mexi em algumas ideias e de repente me veio a ideia de um conjunto, que fui tentando organizar em sumários conforme os tratados. Não ficou completo, mas veio.
O que vale para as artes tradicionais - e um exemplo maravilhoso disso é Manuel Bandeira com seus sonetos tirados de sonhos - vale também para as técnicas em geral. É incomum associar as musas à programação de computadores, mas facilmente reconhecemos um discurso do Steve Jobs sobre o "connect the dots", ou os momentos de uma ideia genial que geraram o Facebook e o início da corrida pelas redes sociais, ou algum outro projeto, incluindo jogos como Undertale. Coloco todas as técnicas na mesma categoria das artes, e aqui vale até mesmo as ciências, com seus momentos de mudança de estado de compreensão, ou mudança de paradigmas, que veem na forma de um Eureka de Arquimedes, da anedota da queda da maçã que originaria a mecânica para Newton, dos procedimentos descritos por Steven Johnson em Darwin e afins no seu livro "De onde vem as boas ideias?". O conhecimento associado com uma habilidade fixa se torna o alimento de onde as novas conexões cerebrais se perfazem.
Podemos dizer inclusive que existem "modos de pensar". Como pensamos em um idioma, podemos pensar "romancisticamente", "poeticamente", "musicalmente", "programativamente". Isso significa colocar no fundo da atenção a expectativa por puxar pensamentos ligados a cada um desses temas, de modo a facilitar o processo de passagem no fundo da mente (verbum mentis) de lembranças, a partir das quais surgirão novas ideias. Daí, por exemplo, se ativo a tendência a pensamento musical, posso lembrar mais frequentemente de trechos de músicas e perceber relações entre elas, ou, de repente, pensar em novos trechos de músicas: não é preciso ser músico profissional para isso, basta "ativar" a intenção. Um artista, um habilidoso em alguma técnica, tende a fazer essa ativação, por obrigação ou por vontade, tendo o seu ofício no fundo da sua mente, de modo a contemplar relações com mais frequência. É a inspiração que transparece mais vezes de modo aplicado. Falo isso como alguém que tentou transitar entre várias habilidades e observou diversas pessoas com talento em várias delas.
Ora, se, porém, o artista ou o técnico presta atenção em um só desses insights, preferencialmente um tão forte que ele passa a descrever que possa pensar naquilo por vontade própria, possibilita-se então um desvio da atenção. O artista pode perceber daí por diante a raiz da sua arte: o insight, e passar a prestar atenção na sua relação com esse processo. Como ele ocorre, como alimentá-lo, de onde ele vem, qual a relação da sua vida comum com ele, quais as implicações dele para a vida de fora, que forma ele assume - e, diga-se de passagem, ele nasce das suas lembranças e sua vontade, da sua posição existencial, como abordado no tratado da inteligência. É ao contemplar essa forma que o insight sugere que fala-se de uma "segunda personalidade" do artista. É dela que Ferreira Gullar fala no poema "Traduzir-se": "Uma parte de mim / é todo mundo: / outra parte é ninguém: / fundo sem fundo". E Ortega y Gasset, no ensaio sobre a "Desumanização da arte", fala do afastamento do artista. É o espanto aristotélico tomado agora sobre o próprio espanto.
Em segundo lugar, existem também as pessoas que cumprem sua habilidade de modo mais burocrático, mas, ainda assim, têm um foco em ter uma vida bem vivida. Pode nascer de uma inspiração como "eu quero ser justa, como indica a balança que é meu signo (libras)", em geral nascida, quer seja percebido ou não, de uma fonte mais longínqua, como "amar ao próximo como a ti mesmo", ou o desejo de ser justo em geral. Essa ênfase por organizar a própria vida, que molda todas as ações posteriores, é o que comumente chamamos de uma pessoa madura, e, dependendo do quão abrangente foi a meditação em torno do próprio passado, chamamo-na de sábia. Novamente, e como já mencionado, o ato de prestar atenção reflexiva não mais à ordenação em si, mas ao por que, como, e qual princípio gerou o esforço de ordenação, abre as portas da Filosofia. No mais, a meditação se esse princípio é o mais justo e a comparação dele com outros. Uma vez que a vida tenha sido já ordenada com base num princípio, adquire-se um senso de medida sobre como as ações se moldam e se ajustam na prática a partir de uma ideia. Esse exemplo pessoal será o modelo a partir do qual imaginar as demais ações e princípios possíveis, em busca do mais elevado.
A ficção pode ser de grande auxílio nesse processo. A grande ficção costuma apontar precisamente a descoberta de um princípio constante de onde as próprias ordenações nascem. É o caso, por exemplo, da medida descoberta por Raskolnikov ao encontrar Sônia no romance de Dostoiévski, Crime e Castigo. Ele representa o sujeito que busca ordenar a vida com base numa ideia, ainda que negativa, e de repente tem um vislumbre de uma outra ordem possível, que engloba e transcende a sua própria, representado por Sônia. É o choque, um insight gerado na presença de Sônia, o que transforma Raskolnikov. Esse é o tema por excelência de Dostoiévski, mostrado no Mujique Marei, no Sonho de um homem ridículo etc.. É também o tema de "Onde está o amor, aí está Deus" de Tolstói. E, como mostrado no tratado da inteligência, esse insight tomado ao seu ápice revela a própria escada da inteligência humana.
A terceira porta é para os curiosos de plantão. A curiosidade é parte do instinto humano. Suponho que vem dela em primeiro lugar o sentido do que Aristóteles quis dizer, no começo da Metafísica, de que todos os homens têm desejo de conhecer. Esse desejo instintivo, inato, é a curiosidade. A curiosidade atiça, a descoberta gera um prazer. A curiosidade, porém, por si mesma, gera o caos, porque é impossível ter conhecimento de todas as coisas, nem sequer de um só assunto, então acaba-se por transitar entre várias partes de várias áreas, sem ter propriamente meios de juntar os conhecimentos, menos ainda ordená-los. Não por acaso não se confia em quem estuda de modo autodidata em relação a quem faz um curso: o curso tem uma grade, uma ordem, portanto há expectativas do que se verá e do conjunto a que aquele conhecimento faz parte. Mas, quanto aos curiosos, podemos pensá-los em algumas categorias: i) os curiosos totalmente desordenados, ii) os colecionadores, iii) os que buscam meios de ordenar sua bagunça. Dos primeiros já falei, mas posso acrescentar os "acumuladores compulsivos": aquelas pessoas que juntam "tralhas", objetos de modo desordenado, a ponto de ocuparem espaços inteiros da casa numa verdadeira barafunda. Quanto aos segundos, existe um critério na coleção dos objetos, como aqueles que fazem um curso, mas o critério aqui é dado pelo próprio sujeito. Há quem sinta prazer em colecionar selos, cartões postais, jogos de algum console, roupas, livros. Apesar do objeto ser definido, na hora de juntá-los em algum espaço começam as questões sobre como organizá-los da melhor maneira, em que sequência, de modo que possam ser melhor apreciados. O terceiro caso é algo que combina os dois anteriores: é a diferença, no caso de gerações anteriores, de apenas ler jornal e recortar trechos que lhe pareçam interessantes. Idem, ver as redes sociais ou printar trechos, baixar vídeos (legalmente ou não), até que, de repente, o HD - ou a memória, no caso antes dos jornais, em cultura predominantemente oral - está lotado de informações sem nexo: como aproveitá-las em alguns anos? Para que servem? É preciso então pensar em meios de tornar a informação acessível. Nesse desejo de ordenação, quiçá instinto ordenador, pelo desejo de preservação senão dos dados, ao menos do tempo gasto, surge a inteligência que busca criar pastas (físicas ou virtuais) e pastas de pastas, fichários e afins para tornar a informação acessível, ordenada. Como na introdução, surge aí a percepção da diferença entre um mero depósito com livros, uma biblioteca conforme uma ordem preestabelecida, complexa e geral como a CDD ou a CDU, e o modo pessoal de tornar as informações encontráveis a longo prazo para si mesmo. Por exemplo: um livro pode ser de literatura, mas para você pode ter valor historiográfico, etnológico, filosófico, ou mesmo ser de interesse menos pelo fato de ser literatura e mais pelo estudo da visão de mundo do autor. Pode ter vindo por causa de um outro livro e seu interesse pode ser menos o tópico do que o que gerou o interesse ao livro. Nada disso está previsto nas ordens oficiais, por definição, porque são uma combinação de chaves diferentes. A ordem CDU e CDD é por tema, mas um autor pode trabalhar vários temas diferentes, como Aristóteles, Descartes, Leibniz ou Newton, então existe a ordem por autor, mas existe também a ordem por época, por país, por idioma, e assim sucessivamente. A meditação nas chaves de ordem, na ordem pessoal, no cruzamento das duas é, afinal, a abertura abrupta da porta para a Filosofia.
Essas três vias são, podemos dizer, a via das Artes, da Moral e do Conhecimento, ou, em termos clássicos, da Beleza, da Bondade e da Verdade. Elas são também consideradas como análogas aos três aspectos da consciência humana: sentimento, vontade e inteligência. As três forçam a inteligência a ascender em graus maiores de abstração e abrangência. Por conseguinte, cresce a capacidade de pensar em termos do Ser. Qualquer um, é evidente, que saiba que existe essa ideia, pode tentar pensá-la, mas isso não é ter o peso efetivo da relação entre o concreto e o abstrato. Podemos falar, como dito no tratado de inteligência em 7.1, de sociedade, do brasileiro, da humanidade, da vida, da cultura chinesa, até mesmo de nós mesmos ou do outro etc., sem nos darmos conta da quantidade imensa de objetos ou aspectos que o nome esconde. E fazemos isso o tempo inteiro. Toda fala tem algum grau de abstração, ainda que passem despercebidas as suas implicações. Mas elas deixam marcas no falante e no ouvinte. Essas marcas, somadas, vão embotando a inteligência cada vez mais. Nessas 3 vias, toma-se à mão a habilidade de medida, a partir da qual é possível percorrer o caminho de compreensão das ordens possíveis e do Ser que as permite existir. As três só são possíveis, quer sejam percebidas direta ou indiretamente, pelo insight.
Por fim, a quarta porta, que aqui será tratada só por cima. A religião é, como me parece, a própria fonte origem da compreensão do Ser. Seja pelo culto de mistérios, no caso pitagórico, no caso apolíneo e dionisíaco, de onde brota a filosofia grega, sejam nas revelações propriamente religiosas, como as que originaram o budismo e os sábios hindus, seja nas revelações diretas dos profetas, incluindo Maomé, mas, sobretudo, a Revelação encarnada, o próprio Jesus Cristo. A prática religiosa por si é um caminho feito rumo ao centro que a origina: independentemente das várias cisões ocorridas no cristianismo, por exemplo, existe um centro a que todas elas se originam, se são cristãs, e a meditação desse modelo revela uma Verdade que só vale a pena ser tratada de modo completo no tratado da religião: é a imagem do Ser. Cabe aqui apenas dizer que, enquanto revelações, a meditação do ato de receber a revelação em si, progressivamente, e entender como ela se aplica na vida prática, transforma o sujeito em alguém capaz de abrir a quarta porta da Filosofia. É uma mescla de moral, vislumbre sensível e inteligência, sem, contudo, fechar-se em nenhuma delas: assim também ilustra a Divina Comédia de Dante.
Uma vez que se perceba que a Filosofia se espalhou nas várias áreas da ação humana e fica à espreita de quem decida percebê-la através do insight, podemos partir, para os que desejem trilhar esse caminho, para o próximo passo antes de chegarmos propriamente em uma definição de Ser: a descoberta do Princípio da Analogia.
3- O Princípio da Analogia
3- O Princípio da Analogia
Sinceramente, este tema é o que acho mais divertido. Ele está enunciado brevemente no tópico 7.2 do tratado da inteligência, como uma das técnicas da inteligência. Mas eu preparo o leitor para saber que não se trata só de uma técnica, mas sim que há um princípio em que ela se assenta.
Como ilustrado lá, o princípio da analogia vem da capacidade abstrata que, por sua vez, está embutida em todo ser vivo. É preciso um pouco de imaginação para perceber, porque de tão óbvio, de tão imediato, só se pode revelá-lo sem estranheza com um raciocínio mais longo. Dividamos os seres no modo convencionado: no reino mineral, reino vegetal, reino animal e, nele, os seres racionais. Às rochas, aos planetas, pouco importa qual origem da força que lhe esteja sendo impressa: ele se moverá de acordo. Os minerais são o exemplo que melhor ilustram a fé religiosa, justamente por serem o ápice da generalização total: apenas obedecem, conforme lhes seja mandado. No reino mineral pode-se falar em extrapolação, porque eles, afinal, não raciocinam; mas não se pode deixar de notar que existe essa característica: pode-se imaginar a possibilidade de que os objetos inanimados só se movessem perante tais ou quais agentes de forças, e não pela força em geral: assim, por exemplo, antropomorfizamos espadas como a do Rei Arthur ou o martelo do Thor, e as colocamos como imensamente pesadas, movendo-se unicamente perante os escolhidos. Não é o caso: os objetos inanimados aceitam a generalidade. E mesmo os seres microscópicos, mesmo os átomos e as partículas subatômicas têm as chamadas afinidades, e também cabem em si qualquer um do gênero que lhes são afim, e se repulsam de qualquer um que lhes não for afim. Do mesmo modo, as plantas, além da tendência física como no reino mineral, reduzida pelo fato de estarem enraizadas, tendem, enquanto viventes, o crescimento rumo a qualquer luz, seja a solar, seja a artificial, desde que cumpra com os requisitos necessários, caso esse das estufas. E a imparcialidade dos animais perante os parceiros sexuais, além das duas características legadas pelo reino mineral e vegetal, da tendência de generalidade perante as forças (agora um tanto restrita pela vontade), da busca pelo crescimento quaisquer que sejam as fontes que cumpram os requisitos, também nos animais vemos o surgimento de algo ainda mais poderoso: a linguagem. Um aviso de predador não escolhe qual é o predador, mas expõe quaisquer predadores: é absurdamente eficiente! Se cada sinal sonoro ou mesmo gesto valesse apenas para aquela situação naquele espaço e perante aquele objeto, a comunicação seria impossível, porque por definição o segundo animal que recebesse o sinal estaria no mínimo em outro espaço. A linguagem, animal ou humana, se fundamenta na generalidade, e é a inteligência que consegue ir aos poucos aprofundando, de um lado, até a particularidade de cada objeto, de outro, até as implicações últimas de generalizações possíveis. Ir dessa massa abstrata que os animais também possuem até a distinção precisa do objeto particular e do Ser. É essa capacidade generalizante que está presente em todos os seres, mas em especial na linguagem, que revela o princípio da analogia.
O princípio da analogia significa o seguinte: o fato de podermos passar de um conhecimento de um objeto para outro implica que a linguagem revela um objeto mental mais abstrato do qual aqueles dois seres são derivados em comum, por assim dizer. Ou seja, se eu enquanto criança aprendo sobre o meu corpo, eu estou aprendendo sobre o corpo de outras crianças. E isso só é possível porque eu e a outra criança, no mínimo, compartilhamos traços em comum. Também as crianças, nesse processo, frequentemente tapam os ouvidos ou os olhos, e acreditam que ao fazerem isso estão tapando os dos outros. A distinção mais precisa vai-se adquirindo nas experimentações sociais.
Mas, mais ainda, temos o conceito de espécie, isto é, distinguimos os animais pela capacidade reprodutiva. Essa é a base natural que justifica o fato de que, ao conhecer sobre o meu corpo eu estuo conhecendo o do outro: compartilhamos de traços comuns porque somos da mesma espécie. Mas seria estranho, eu sendo homem, falar sobre os traços da mulher - e, ainda assim, é possível. Muita coisa é preciso abstrair: não apenas os órgãos sexuais, mas a disposição hormonal, e as diferenças corporais geradas disso e de outros fatores, gera distinções naturais e culturais. E, ainda assim, conhecer sobre um homem permite conhecer muito sobre mulheres, e vice-versa: dizemos que, afinal, participamos da mesma espécie, então muita coisa há de ser comum. Sentimos desejos fisiológicos, entramos em conflito com as obrigações sociais, queremos ser aceitos e bem sucedidos etc. Em suma, como diria o comediante George Carlin e praticamente todos os memes, são as "little things we have in common".
Mas a explicação natural e mais simples vai perdendo espaço. Os animais categorizam os seres, falando genericamente, sem aprofundamento, em predadores, competidores mais fortes, perdedores, fêmeas no cio, objetos sexualmente aproximáveis (pernas para cachorros, por exemplo). Sobretudo na primeira e na última categoria, há uma abstração de toda espécie, porque pode ser até mesmo um objeto inanimado, ou parte de um objeto animado, natural ou elétrico. Mas os bichos acham algo em comum que os move a partir dessa intencionalidade revelada nas categorias. Também nós compomos metáforas e comparações: percebemos a força do touro, a passividade da pedra, a astúcia veloz da raposa, e, antes mesmo de termos abstraído os conceitos em palavras, dizemos que uma pessoa é um touro, ou uma pedra, ou o contrário, projetamos histórias animando esses seres como se fossem pessoas. Há de se apelar, no melhor dos casos, à noção material de Evolução: assim como podemos metaforizar por causa de uma espécie em comum, podemos falar também das demais coisas porque todos viemos de uma mesma raiz comum. Na nossa concepção atual, retrocedemos desde as espécies atuais, incluindo também as formações minerais em geral, até as espécies mais primitivas, até as bactérias, até os átomos de carbono, até os átomos primeiros de hidrogênio, até a singularidade, o ponto infinitamente condensado de onde toda a matéria teria sido originada no Big Bang. A metáfora, portanto, é possível porque todos viemos da mesma raiz material, portanto todas as coisas podem ser comparadas umas com as outras.
Mas a Evolução por si não explica a possibilidade de perceber na queda da maçã com o movimento dos planetas a gravidade, que bem podia ser explicada como uma metáfora tornada objeto mental, científico. Nem explica a comparação do impacto de uma obra de arte com a de uma equação matemática. É porque estas relações estão em um nível ainda mais abstrato.
Veremos isso em mais alguns detalhes no tópico sobre o Ser. Por enquanto interessa perceber que a metáfora existe, que a transferência de conhecimentos existe e é de todos os seres: A capacidade de generalização é universal. Mas, no que diz respeito à inteligência, é possível perceber as nuâncias com cada vez mais precisão que distinguem os objetos, não apenas as que aproximam. E assim ao me conhecer eu conheço todos os homens e mulheres e todas as coisas, e, diga-se de passagem, quanto menor o trabalho no coração (tratado da inteligência) mais eu aplico, como o caso da criança, o eu-mesmo como se os outros fossem iguais a mim, e não seres com particularidades. Por outro lado, existe, de fato, o que, no conhecimento de mim, se relaciona com todas as coisas. Quanto mais próximas são as coisas, por espécie, mais coisas em comuns. Assim, se eu tivesse um irmão gêmeo, uma imensa quantidade de mim seria transferível para o outro, e, mesmo assim, ele teria particularidades. Idem, entre eu, meu irmão gêmeo, e um outro irmão. Entre eu e meu pai, ou entre eu e outro homem qualquer. Depois eu e minha mãe, ou entre eu e uma mulher da minha idade. E assim sucessivamente: entre eu e um cachorro, eu e uma barata, eu e uma pedra, eu e um planeta. Afinal, entre eu e o ser humano, eu e a classe dos animais, eu e a classe dos seres vivos. Eu e o ser. Se eu enuncio algo como "Todas as coisas têm uma unidade, ainda que mudem suas partes", eu estou enunciando algo que vale para mim como para um rato, uma barata, para você, para um computador, para um átomo, para um planeta e para um personagem de ficção ou o livro onde está esse personagem. Quanto mais distante é o objeto com que se compara, mais abstrato é o que se pode dizer em comum. Eu afirmo que, diferentemente da noção material do Big Bang - que pode, aliás, mais tarde se descobrir uma verdade parcial ou mesmo errada, pois já temos até hipóteses concorrentes -, a noção que fundamenta a analogia, a metáfora, a generalização que os seres conseguem fazer, é o fato de todos pertencerem em comum a esse Conhecimento Total, ou à Causa Primeira, ou ao Ser. O Big Bang e a Evolução são uma conjugação de imagens materiais que tentam ilustrar um princípio abstrato, que, como já mostramos, é a própria causa do nascimento, existência e mudança das coisas.
Assim, o princípio da analogia revela o Ser. Para uma breve definição antes de entrarmos mais profundamente no tópico, Ser é o ponto mais abstrato possível. Se eu comparo a mim mesmo com um pensamento ou com uma fórmula, não há sequer nada da matéria em comum: eu só posso partir para características excessivamente gerais e abstratas, e que nos colocam, eu e a fórmula, ser vivo e conhecimento, numa mesma categoria. É com Aldous Huxley, em Regresso ao Admirável Mundo Novo, que vi a comparação entre o ato de percepção de um padrão na natureza por um cientista e por um romancista: a comparação de ambos os objetos mentais percebidos, como também a comparação mencionada acima, ambas, só podem fazer sentido desde uma categoria ainda mais abrangente e abstrata. Essa categoria é a categoria do Ser.
4- O Ser
4- O Ser
Eu pretendo provar não apenas a existência do Ser, mas também do que chamo de categorias intermediárias, que são, de modo mais amplo, o que, no tratado da inteligência, chamo de objetos mentais. Primeiro vamos ao Ser, que, como vimos no tópico anterior, é o fundamento de toda a possibilidade analógica e, portanto, de todo o conhecimento. Para lembrar, o próprio fato de poder soltar um alerta animal sobre um predador e ser entendido em um espaço distinto daquele do emissor já é a presença de não uma, mas várias analogias, decodificadas instintiva e automaticamente pelos animais. É, ao contrário, o pensamento racional, a atenção reflexiva, que pode notar a complexidade num ato tão profundamente impregnado em banalidade.
Defini o Ser como o ponto mais abstrato possível e a transição sincera entre os objetos abstratos, incluindo o principal deles, e as coisas concretas como a posse progressiva e individual da Filosofia. A primeira coisa que é necessário fazer é mostrar o processo de atingir o Ser a partir de um objeto concreto; depois, tentar validá-lo como sendo uno e imutável. Já sabemos que o Conhecimento Total é imutável (ainda que possa existir a chance de variar, por sua vez, previstas nessa versão total), mas não sabemos ainda do Ser. Vamos por partes.
Dado qualquer objeto concreto (a), devemos progredir em graus de abstração até uma posição tal que seja a mais abstrata possível. Assim, por exemplo:
(a) eu, que sou um tipo de < (b) homem, que é um tipo de < (c) ser humano, que é um tipo de < (d) animal, que é um tipo de < (e) ser vivo, que é um tipo de (f) ente material, que é um tipo de (g) existência, que é um tipo de < (h) ser.
Para ficar mais claro: a < b < c < d < e < f < g < h. Fiz acima o processo de abstração, que parte da analogia com algum ser semelhante conforme a categoria. (A) corresponde ao objeto concreto, (h) corresponde, como quereremos demonstrar, ao Ser uno, e as letras que estão no meio, independentemente de quantas forem, no caso presete (b)-(g), são as categorias intermediárias. Os sinais, por sua vez, são para ilustrar que a cada nova categoria cabem mais seres. Daí que em (a) literalmente só há um, que sou eu. Poderia ser você. Poderia ser uma pedra. Mas em homem, isto é, na simples passagem da primeira para a segunda categoria, já surgem uma quantidade imensa de objetos concretos. Eu poderia colocar mais categorias intermediárias específicas entre (a) e (b), como, por exemplo, homem brasileiro, ou homem moreno, ou ainda homem brasileiro moreno: seja como for, essa categoria (a1) teria mais objetos do que (a) e menos do que (b). Isso vale pros demais casos. Assim também há mais seres humanos do que homens, porque se incluem as mulheres (e mesmo ocasiões a mais, como hemafroditas e casos biologicamente distintos dos genes XX e XY majoritários). E assim sucessivamente, até chegarmos no ponto mais abstrato. Nele cabem todas as coisas, e é, afinal, o fundamento do princípio da analogia.
Todas as coisas são, portanto são seres, no sentido fraco da palavra, que usamos com letra minúscula. Ser um ser significa participar dessa totalidade que chamei de Conhecimento Total ou Causa Primeira. Assim, os seres (mais precisamente os entes) são múltiplos, mas o Ser propriamente só há um. Isto significa dizer que esse Conhecimento Total, unificado, é um todo homogêneo e indistinto, algo como a fórmula das fórmulas, e é, portanto, o Ser. Dito de outro modo, é aquilo perante o qual nada pode ser comparado, mas é o que permite toda e qualquer comparação.
Para além das evidências colocadas acima, a única prova propriamente dita de que só pode haver um Ser é porque, afinal, se houvesse dois ou mais, nada impediria o raciocínio de postular um superior que abrangesse ambos. Do mesmo modo que é possível passar de objetos múltiplos para objetos abstratos que os abrangem, e, por sua vez objetos ainda mais abstratos que abrangem os anteriores, e assim sucessivamente. A cadeia de abstrações não teria fim, exceto pela chegada a esse ápice da abstração. É ele o tema da Metafísica, e dele que se origina a lógica, por exemplo. Mas o avanço das ciências revela que mesmo a lógica é um aspecto da totalidade, e pode haver, conforme o escopo, outras modalidades de lógica, mais adequadas para lidar com ele. Como nos demais casos, a possibilidade técnica e preditiva garante algum grau de verossimilhança na hipótese até que surjam teorias mais abrangentes que as expliquem de modo mais claro. Seja como for, entre a lógica clássica e as lógicas modernas, como as anticlássicas ou a fuzzy. A existência de várias lógicas implica a existência de uma que abranja os vários escopos, quer seja fácil de simplificar ou não (nem todo conhecimento vale a pena, por ser excessivamente complexo e para pouca coisa, como veremos em tratado da cultura, e como postula a Navalha de Ockham), e a existência da lógica implica a existência de algo mias abstrato que a fundamente. Mas ao chegar nesse algo, pode-se postular algo ainda mais abstrato. A passagem sucessiva de graus de abstração não importa: importa que o Ser é o ponto de onde nada mais pode ser abstraído. Isso implica também dizer que ele não pode ser comparado a nada, juntado a nada, portanto é simples: se pudesse ser juntado, implicaria a existência de um nível ainda mais abstrato, como a molécula implica, digamos, dois átomos, e dois átomos implicam algo que os fundamente, a atomicidade, e assim por diante.
Então essa Causa Primeira, a minha versão, isto é, a soma de todos os conhecimentos na sua forma perfeita, perante a qual todas as ciências e conhecimentos populares são uma vaga imagem, é fundamentada, por sua vez, por esse ponto mais abstrato do que todos esses conhecimentos, e que é precisamente o que os mantém como unidade e completude: é o Ser. Tiramos do Ser o título de Causa Primeira, mas apenas para fins didáticos: o Conhecimento Total está contido no Ser, mas acontece que no Ser está também não apenas ele, que implica em todo o território onde os fenômenos podem acontecer, mas também todos os seres tal como se manifestaram. Assim, o Ser abrange absolutamente tudo: o tempo e o espaço, todas as possibilidades de fenômenos nele contido, todos os fenômenos que de fato aconteceram, todos os conhecimentos possíveis. Mais uma vez, é, portanto, o ápice da abstração possível.
E ainda assim a inteligência humana consegue concebê-lo. É porque como o Ser está presente em todos os seres, em suma, em tudo, o princípio da analogia, como tentei mostrar, permite em si a generalidade: é algo natural. O abstrato está presente no concreto e o gera. E, na presença do concreto, percebe-se o abstrato. Como falei, mesmo animais o fazem. Só que o ser humano consegue refletir sobre o percebido, e, com isso, postular essa causa primeira, como também consegue descer até o ápice do esforço de particularizar cada objeto. Seja para cima ou para baixo, conseguimos, pelo conhecimento, isto é, pela analogia e abstração entre objetos, captar as várias possibilidades dos objetos concretos e abstratos, ainda que não seja possível, pelo limite da memória e do tempo de vida, o conhecimento total sobre nenhum deles, nem concretos nem abstratos.
Assim, provamos a existência do Ser a partir da soma das noções Conhecimento Total e do Princípio da Analogia. Mostramos as categorias intermediárias, e sabemos da existência concreta dos seres. Nos termos tradicionais, temos o Um e o Múltiplo. Eu acrescento esse meio (deve ter sido colocado antes, mas não li ainda). Não que seja novidade, mas, antes de falar sobre ele, convém entrarmos em uma breve apreciação de Platão e Aristóteles.
4.2- Platão vs Aristóteles: o Um, o Múltiplo e as Categorias Intermediárias
4.2- Platão vs Aristóteles: o Um, o Múltiplo e as Categorias Intermediárias
Platão não foi o primeiro nem o único sujeito a elevar o pensamento ao Um, ou ao Ser. Foi, inclusive, de Parmênides que se supõe ter aprendido. Além do mais, também Pitágoras falava do Um enquanto princípio, e na China, por volta da mesma época que Platão, Lao Tsé postulava o Tao, o Caminho, ou o Um, que se atingiria por meio da compreensão do desbalanceamento e do equilíbrio da Dualidade, ou Yin e Yang. A diferença de Platão foi, de um lado, a presença dos sofistas, de outro, o uso do diálogo. Para Platão a palavra tem um poder divino, pois ela capta as formas abstratas ou objetos mentais, ainda que os usuários delas não tomem plena consciência (p.231 de "Sofista"). Falarei mais disso depois. Mas, a princípio, Platão mostra, em todos os diálogos, mas para o presente caso, em "Sofista" e "Fedro", a diferença fundamental entre um sofista e um filósofo.
Sabe-se que na época Atenas estava rodeada de sofistas, isto é, os professores pagos para ensinar conhecimento, oratória e virtude para os mais jovens, ricos, que, portanto, assumiriam mais cedo ou mais tarde o seu lugar na democracia e, para melhor se posicionarem, precisavam de uma boa formação. Como Platão mostra no "Fedro", ao sofista ele seguiria, como adágio popular da época, como a um rei; mas a um filósofo, seguiria como a um Deus. A diferença dos dois está no fato de que o sofista discursa sobre um tema; o filósofo, em suma, o ordena. Ordenar implica pegar o objeto na sua forma, isto é, na sua ideia, e derivar dele categorias intermediárias, de cima para baixo, aperfeiçoando-as até que atinjam os dados concretos com o máximo de precisão possível - daí o diálogo. O sofista, ao contrário, parte dos dados, encaixa na ideia, mas só consegue chegar até as categorias intermediárias sem conseguir dar um salto abstrativo mais amplo. Mênon consegue falar sobre os vários tipos de virtude conforme os vários tipos de pessoas, mas não consegue perceber o princípio unificador dos vários tipos de virtude e que permite que chamemos todas essas variantes de um mesmo nome. Idem, no caso do Fedro, com o objeto da retórica, e no caso do Sofista, com o caso do sofista. Ao tentar achar o sofista, ou o pescador, Platão, por meio do Estrangeiro, constrói um objeto (Arte) a partir do qual destrincha várias camadas de profissionais possíveis. Ao fazer isso, todos esses objetos (profissões), que a princípio estavam caoticamente soltos na sociedade, de repente revelam uma correlação mútua e harmônica: o discurso os uniu num todo comum. Esse processo dialético platônico implica as categorias intermediárias, mas, até onde eu li (não foi tanto, admito) não foi dada a ênfase nesse terreno intermediário - ao menos não desse modo prático.
Os sofistas, longe de serem algo em si negativo, eram, por assim dizer, coletores da multiplicidade e os primeiros organizadores da informação. Pior seria ter que coletar tudo do zero e ainda ter que organizar. Mas entre eles e os filósofos existe a tomada de consciência e capacidade ordenadora, isto é, juntar os dados a partir de um princípio mais e mais amplo que revela-os em conjunto e com significado. Expandirei esse tópico depois.
O fato é que Platão, portanto, não apenas ascendeu o pensamento ao Ser, como também ensinou o modo de subir e descer na organização dos dados. Essa, aliás, é a marca distintiva da filosofia ocidental, e que se espraiou pelas ciências. A obra aristotélica é a aplicação dessa habilidade, mas ele não a ensina, só Platão. Por causa desse hiato entre os dois (ver mais em tratado da inteligência, tópicos 9.1 a 9.3) tendemos ora mais a enfatizar o Um em detrimento da ciência, ora mais a enfatizar as ciências em detrimento do Um. Ora Santo Agostinho, ora São Tomás de Aquino; ora Leibniz, ora Bacon; ora a ênfase nas causas materiais e eficientes, ora nas causas formais e finais. O pêndulo em que oscila a nossa cultura estava em Aristóteles, e a tradição iniciada por Olavo de Carvalho volta-a de novo para Platão, ou para, quem sabe, uma tentativa de solução. Não que as ciências não estejam por si dentro de um esquema de uma Ideia que as transcende e as governa: a universidade que nos foi legada me parece mais a aplicação de Hegel e Marx, ambos idealistas, por colocar uma teleologia do progresso. Mas isso vai além da minha capacidade de descrever em detalhes.
Fora do discurso humano, apesar de ser inato a generalização, percebemos relações nas coisas, mas elas não se tornam explícitas para nós. Explicarei mais sobre isso depois, mas é no discurso racional, ainda que de si para si, que se torna possível abstrair conscientemente e relacionar as várias partes. Do mesmo modo que existe uma diferença em apenas consumir as informações, seja da cultura oral, do jornal, da TV ou da internet, conforme as épocas, e coletar esses dados para si, tentando ordená-los, seja na memória, seja no papel ou em algum HD.
As categorias intermediárias ganham a sua utilidade e validez a partir do Ser. Como no caso do subtópico anterior, (b)-(g) estão submetidos e linkados tanto a (a) quanto a (h): tanto ao ser quanto ao Ser. Essa vinculação mútua garante a validade das categorias no processo de tentar compreender um objeto concreto ou, ao contrário, de tentar compreender alguma das categorias intermediárias a partir do objeto concreto.
Por fim, antes de prosseguirmos, é preciso que eu me demore mais um pouco sobre as categorias intermediárias, no esforço por provar a sua existência. Esse esforço é importante na medida em que torna o pensamento mais confiante de si na hora de tentar compreender algo. Sem essa confiança, rui toda a busca do conhecimento, toda a compreensão possível das coisas. Vamos à prova.
4.3- A existência das categorias intermediárias
4.3- A existência das categorias intermediárias
Ficou definido como categorias intermediárias todas as camadas possíveis que se situam entre um objeto concreto e o Ser. Não importa qual objeto, nem importa o aspecto que eu estou tomando dele para abstraí-lo. Também não importa se não se trata nem mesmo do objeto concreto, mas de uma das categorias intermediárias: entre ela e o Ser, as demais camadas também serão categorias intermediárias.
Quando uma categoria intermediária é tomada como objeto de pensamento, ela passará a se chamar objeto mental. Então o que eu quero provar aqui é a existência dos objetos mentais tanto quanto a dos objetos concretos e, como suponho ter provado em 4.1, a do Ser.
Por definição, nenhum dos objetos mentais se manifesta na vida concreta. Eles não são matéria, apesar de, como o pensamento em relação aos neurônios, se manifestarem concretamente por meio dela. Não existe "ser humano" andando por aí, mas sim cada ser específico, como você ou eu, que pertencemos à mesma espécie. A origem comum, reprodutiva, é a marca material da possibilidade de existência dessa espécie. Mas isso não basta.
Também não basta tomar as ciências como amostra. Todas elas partem da construção de um objeto mental - no famoso dizer de Saussure, o objeto criado conforme o ponto de vista. A língua de Saussure não é a língua dos funcionalistas, nem a língua de Rosenstock-Huessy. A língua tal como se manifesta em um idioma é, na verdade, não só a somatória dos três, como muito mais. Mas ela é também cada um desses três ângulos. Assim também eu ou você podemos ser tomados como objeto de estudo da psicologia, da antropologia, da sociologia, da nutrição, da bioquímica, da neurofisiologia etc., e tudo o que se disser desses vários ângulos terá, como dito anteriormente, validade, uma vez que se ancora no objeto concreto (a base empírica do método científico) e no Ser (a possibilidade de uma verdade absoluta, imutável). Pela veracidade presente nas ciências, pela sua preditividade, como mostrado em 1, a versão perfeita de cada uma delas, mais as que nem existem, ainda ou para sempre, são verdadeiras, porque apontam para essas leis gerais que chamei de Causa Primeira. Mas nem o fator biológico nem o fator da versão perfeita das ciências é suficiente para demonstrar a existência dos objetos enquanto apenas parcialmente verdadeiros, o que, por definição e limites da memória e do tempo de vida, é o que temos e o que teremos.
Os objetos mentais, as categorias intermediárias, existem em uma profusão muito maior do que os próprios objetos concretos. São igualmente múltiplos. Basta pensar que se só existisse uma pedrinha no vazio total, a relação desse único objeto existente com o Ser poderia ser puxado ainda de inúmeros modos: enquanto mineral, enquanto objeto sujeito a forças, enquanto ser formado por certos átomos etc. etc.. Só nesse curto exemplo já se transcende em quantidade o próprio objeto. Então, para tentar demonstrar a existência e veracidade de todas as categorias intermediárias possíveis, mesmo diante da única versão perfeita, é preciso pensar primeiro na questão da relatividade da verdade, o que, aliás, é um dos motes da nossa época.
4.3.1- As três camadas do conhecimento
4.3.1- As três camadas do conhecimento
Este é o tópico mais útil deste tratado de filosofia. Nasceu no próprio esforço de resolver a questão do ceticismo (tópico 9.2 do tratado de inteligência), mais especificamente do contraste entre culturas ou sistemas coerentes de vida, distintos uns dos outros. Uma frase comum até pouco tempo na minha época foi o "não existe verdade absoluta", ou "tudo é relativo". Em parte inspiradas pela quebra do mecanicismo newtoniano no século XX, em parte pela perda da compreensão da Metafísica pela via cética de Descartes e Sexto Empírico e de Kant, em parte pelo acesso do Ocidente ao Oriente e a visão de inúmeras novas modalidades de vida distintas da ocidental. Já em Hegel e Schopenhauer existe marcas do budismo; Nietzsche, filólogo, é estudioso de línguas, numa época em que o sânscrito começa a se espalhar entre os intelectuais. E a linguística comparatista que, como efeito secundário, viabiliza o acesso a inúmeros documentos do oriente. Todo esse pré-multiculturalismo, por assim dizer, além da influência da dialética hegeliana e marxista, onde o Bem e a Verdade não se colocam mais em um plano presente, mas em uma intenção direcionada a um plano futuro, idem, com o rápido avanço das ciências, que troca de conhecimentos rapidamente, somou-se em uma perda, potencializada e popularizada após os meios de comunicação, sobretudo a internet, do senso de compreensão e da Verdade absoluta. Falar em Metafísica na nossa circunstância é absurdo, quando, aliás, uma parte forte da nossa cultura não entende mais sequer o Amor, tomando-o pelas suas causas materiais e eficientes, isto é, as reações químicas e fisiológicas que ocorrem no corpo e geram, por exemplo, o tesão e o impulso. Perante a nossa época é preciso restabelecer as bases, e não por acaso tentamos sempre nos voltar para a biologia: é porque ou tudo é relativo ou deve haver uma base na própria constituição material dos seres que fundamente tudo o mais. De baixo para cima, isto é, da biologia ou causa material e eficiente para a cultura, ou de cima para baixo, da captação de nexos causais, forma ou finalidade, e a tentativa de adaptá-los a um grupo particular, encontramos então três categorias com que podemos classificar essa transição do conhecimento: a natural, a cultural e a absoluta. Antes de mais nada, no extremo oposto da afirmação corrente de que "não existe verdade absoluta", eu enuncio que "não existe mentira absoluta" (nem mesmo a da frase que me oponho, como mostrarei depois).
Um sistema coerente de vida dá a sensação de estabilidade, de absoluto, ainda que implicitamente. Um jovem que não tenha problemas financeiros, sociais, psicológicos ou de saúde, sente-se invencível; ainda que tenha alguns, sua idade não lhe permitiu passar, de modo geral, nem pela visão da morte, que terá, ao envelhecer, após a morte dos avós, depois dos pais, depois gradualmente da sua geração, nem pelo peso da responsabilidade de sustentar a si e a uma família, etc.. Ele não se sente imortal, porque o é, mesmo que não sinta ou pense nisso. Ou ao menos é imortal até que venham as instabilidades. Quando surgem, na proporção em que surgem, o sistema parece corroer e preencher-se de dúvidas. Diz-se que Deus manda o sofrimento para que possamos reconstruir uma vida que na verdade era mal estruturada, ainda que não parecesse. Também um sistema social, de uma tribo, de uma sociedade ou cultura, de repente, após anos, décadas, séculos de estabilidade, veem-se confrontados com outros sistemas. O filme Apocalypto de Mel Gibson dá uma imagem disso. Como detalhado no tratado da inteligência, nessas horas surge o ceticismo. Percebe-se que são apenas escolhas distintas.
Um sujeito como o poliglota Benny Lewis que decida viver de viajar o mundo passará por várias culturas. Alguns desses mochileiros, como Jana Fadness, passam pelo processo quase total do ceticismo: ao passarem por várias culturas, não se sentem a vontade mais em nenhuma delas, e, ao voltarem pra casa, percebem que também não se sentem confortáveis nem mais com a sua cultura de origem. Ficam desterrados, e, diferentemente dos judeus, sem uma missão definida. Essa imagem do peregrino em busca de si, que pode ser rodando por países, rodando por culturas, rodando por religiões, rodando por relacionamentos, rodando por experiências, como Camus, parte já do pressuposto da impossibilidade de achar um "lugar certo", enfocando-se apenas em conhecer o máximo possível. Mas, se de um lado o total de conhecimento que podemos ter é limitado, de outro, no fundo no fundo nossa capacidade de conhecimento não é tão limitada assim: eventualmente surge o tédio, a sensação de repetição. "Pra onde eu vou parece que é tudo igual". Captamos, ainda que neguemos verbalmente, aspectos gerais. Mas para quem já se fechou da expectativa de um "lugar certo", essa sensação é angustiante, mortal. É a Jana, que perde completamente o interesse e se torna, afinal, opaca. No caso do Benny Lewis, menos inclinado à introspecção, ele achou curiosíssimo aquilo que o comediante George Carlin também aponta: afinal, temos muitas coisas em comum (https://www.fluentin3months.com/life-lessons/) todo mundo precisa comer, cagar, sente tesão, quer sobreviver, deseja ter algum status social, tem gostos e desgostos etc.. Uma verdadeira lição universal!
Também para uma criança o seu meio imediato, representado sobretudo na figura dos seus pais ou criadores representa a estabilidade. Costuma-se dizer que a criança as vê como super-heróis. É que veem os pais como a estabilidade perfeita, pois é a fonte de referência instintivamente mais segura. É só com o tempo que ela vai aprendendo, não sem dor, que seus pais têm limites e o mundo apresenta outros conhecimentos que eles podem nem mesmo imaginar. Vem junto com o processo de desenvolvimento corporal e cognitivo, e, em nossa época, que viu a transição da tecnologia analógica para a digital, os mais jovens rapidamente tomavam posse das tecnologias mais novas (como é natural), o que criou com ainda mais ênfase a sensação de que, afinal, talvez os mais velhos, incluindo os pais, não sejam tão perfeitos e sábios assim. Seja como for, também na criança ocorre o processo de quebra da estabilidade e entrada nesse ceticismo, a qual ela geralmente se apegará a um grupo de referência para representar essa mesma estabilidade perdida.
Nos três casos acima é a mesma imagem sendo representada, seja no grupo, menor ou maior, seja no sujeito que rompe ativamente com a sua cultura para conhecer outras, seja no próprio processo de desenvolvimento individual: é a quebra de uma estabilidade que até então se tinha como certa, e, diante disso, buscamos meios de tentar apaziguar o nervosismo da instabilidade gerada. No primeiro caso, uma sociedade vai sendo transformada em outra conforme as alterações culturais, mas as confusões do choque das culturas permanece e é facilmente percebida nos cidadãos do local (como é o nosso caso); no segundo, apela-se para o instintivo, para as qualidades imediatas como forma de reconhecimento mútuo; no terceiro, busca-se um novo símbolo de estabilidade. Nos três ocorre o nascimento do ceticismo, que, nos sujeitos que tomem mais gosto por estudo, gerará uma dúvida ou sobre a capacidade humana de captar verdades universais - o que é tolice, porque enunciar isso seria enunciar a captação de ao menos uma verdade universal , ou a capacidade da natureza de ser inteligível - o que também seria tolice, visto que até os demais seres inteligem algo, está embutido na possibilidade de sobrevivência, e chegar ao ponto de duvidar da inteligibilidade é a cultura como um todo já estar num grau avançado de posse de inteligibilidade da própria natureza e dela própria. Mas a consciência assim acuada fecha as portas para as camadas mais altas de compreensão, e aí resta navegar por entre as mais baixas, onde ou nada faz sentido acreditável ou sequer é importante, porque basta olhar para os fenômenos naturais que todos temos. Ou caímos ou caímos: no primeiro, para uma comparação interminável de informações aparentemente diferentes; no segundo, para uma visão animal do ser humano.
A verdade é que existem 3 camadas que podem ser colocadas. Esse tema é mais propriamente detalhado no tratado de cultura, mas convém aqui levantá-lo para chegar na prova que guia o fio do raciocínio. As 3 camadas são: a natural, a cultural e a absoluta.
Não é mais justo comparar duas culturas e achar que elas não têm nenhum fundo comum. Não interessa se é de cunho estritamente histórico, em um momento passado onde uma cultura comum originou essas duas. O estruturalismo, por exemplo, mostrou que existem categorias comuns e permanentes que geram as culturas. Estruturas comuns. Elas são obviamente, mais abstratas do que qualquer cultura em particular. Assim também com qualquer ideia, como com Beleza: eu, como homem, posso fazer odes inteiras à beleza feminina, mas também posso chamar outro homem de belo, um cachorro de belo, um quadro, um pensamento, então obviamente que, por um lado, se é verossímil fazer essas afirmações é porque algo há que foi captado em todos os casos; por outro lado, é possível e é preciso captar esse núcleo constante capaz de abranger todos esses casos. De fato, o fator histórico está para a relação entre as culturas como o Big Bang para a causa primeira: é um abordagem material em oposição a uma abordagem formal. No fundo a segunda é o que fundamenta a possibilidade da primeira. É útil conhecer a primeira, mas ainda mais útil ser capaz de inteligir a segunda.
Não é o tema deste tratado, mas poderíamos assim enunciar, brevemente, essa questão: a natureza coloca certas questões constantes para a sobrevivência, seja para que ser for. Em cima dessas questões se compõem expressões para lidar com elas. No caso humano, eventualmente essas expressões se unificam, sob um ou um grupo que as conhece, e formam uma cultura. Já enunciou Câmara Cascudo em Civilização e Cultura a lei: o homem é fisiologicamente universal, mas psicologicamente é regional. Como todo ser humano pertence à mesma espécie, são as mesmas coisas que estamos tentando resolver. O próprio fato de chamarmos todas as culturas de, afinal cultura, é porque todas elas representam para nós uma coisa em comum. Assim, por exemplo, todas as culturas - uma vez unificadas e representantes de um grupo que vive em comunidade - precisam aprender a lidar com a proteção de grávidas, com o nascimento de bebês, com a pedagogia das crianças, com os espasmos hormonais dos jovens, com a possibilidade de traição, com a lida com outros grupos humanos, com a alimentação, com a doença, com a morte etc. Malinowski, em "A vida sexual dos selvagens" conta da tribo do noroeste da Melanésia, matriarcal, que entende a reprodução humana como partindo de espíritos ancestrais femininos que agem no corpo da mulher e geram o filho. Obviamente existe um homem no meio da história, mas eles não sabem da relação entre esse homem e a fecundação que ocorre no útero da mulher. Assim, uma cultura inteira se forma em torno dessa informação, que é falsa. Mas é falsa?
Os etnólogos, antropólogos, culturalistas e, enfim, os cientistas em geral, se recusam a falar em falsidade. São visões diferentes, e suficientes em relação ao grupo em questão. Afinal, no seu contexto específico ele sobrevive, então de algum modo funciona. Os cientistas de matérias duras podem olhar para as humanas como defensores de mentiras, e estes podem olhar para aqueles como defensores de hipóteses que no futuro serão igualmente abandonadas. Fala-se da amoralidade necessária à ciência, mas a verdade ou falsidade existe mesmo para ambos os grupos. Para os primeiros, consiste em achar ou não a resposta exata para uma equação. Para os segundos, em considerar ou não o conjunto de onde aquele hábito avaliado está sendo tirado (óbvio que os cientistas das humanidades não vão sempre obedecer essa regra; no tratado da inteligência menciono o caso de Marcos Bagno, que no mesmo livro respeita um grupo e critica outro, sem usar uma medida justa).
Dito isso, além da noção comum de verdade e mentira, que consiste naquilo que aconteceu ou não aconteceu nos fatos, podemos renová-la levando em conta mesmo a ciência acadêmica, que consiste atualmente no centro principal da produção de conhecimento: verdade implica coerência com o conjunto dos fatos, mentira é a incoerência. O importante agora é pensar em qual conjunto está sendo considerado. Desse modo, uma cultura está a salvo do juízo de valor, seja a cultura melanésia, seja a subcultura queer ou mgtow. Qual é verdadeira? Todas são. E, ainda assim, nosso conjunto de conhecimentos consegue olhar para a cultura melanésia e saber que ela está errada. Em outras palavras, o nosso conjunto abrange o da melanésia, tanto é que somos nós que os estudamos, com todo um aparato técnico e teórico, e não eles a nós. O nosso conjunto o transcende, e no fundo é isso o que todo o estudo humanístico acaba por fazer: ao tentar preservar ou salvar uma cultura da extinção, na verdade está revelando sua pequenez e engolindo-a. A produção excessiva desse conhecimento gera, é claro, confusões na cultura onde eles serão recebidos. E assim, apesar de o ato de pesquisar e ter como pesquisar revelar uma superioridade, ou seja, um conjunto mais abrangente, ao mesmo tempo aumenta-se o ceticismo na própria cultura, e a perda da confiança nela.
É preciso fazer esses comentários mais estendidos porque também o leitor - e o autor - está nesse quadro repleto de confusões. O que estou dizendo é que existem conjuntos menos abrangentes - como a cultura descrita por Malinowski no seu livrinho - e conjunto mais abrangentes - como a cultura que gerou o Malinowski. Se é assim, as ciências ilustram a validade de verdades parciais, seja no conjunto de uma cultura, seja no momento histórico em que se pratica uma ciência, como a física (também o conjunto de uma subcultura)., mas também aqui só temos o que eu queria mostrar como visão metodológica. Funciona, porque é assim que se consegue ter a produção desses conjuntos, ou paradigmas, e o desenvolvimento deles no tempo, com as pesquisas menores, até surgirem os novos paradigmas, ou seja, as novas pesquisas que montam novos conjuntos e/ou quebram os anteriores. Mas e a prova de que existem?
O leitor já deve ter percebido que estou chamando da camada cultural as categorias intermediárias. O Absoluto é em primeiro lugar o Ser, em segundo lugar, abaixo dele, o Conhecimento Total, de que falamos anteriormente. O natural é, ora, os seres, o mundo natural, fisiológico, concreto, e as suas demandas e possibilidades, que são a base mesma de onde nascem os atos culturais, ou expressões, e, deles, as culturas. Mina intenção é afirmar que as categorias intermediárias existem, e não são só "criações culturais". Essa expressão usada hoje em dia não seria problema nenhum, mas nela está embutida conotativamente a intenção de desvalidar uma cultura que não se goste, e, mais ainda, de desvalidar a existência do absoluto.
Essa conotação nasce, como em "A invenção do Nordeste" de Durval Muniz, da insatisfação para com a forma da cultura a que se pertence. "Ela não me representa", ou "estamos em uma crise de representatividade". Significa que aquela cultura, enquanto sistema fechado hipotético, chocou-se com outras, possui agora novas expressões que não foram integradas. Do ceticismo, como falei acima, nasce o desejo de desconstrução. Reconhece-se os desejos naturais, há já expressões culturais, e, armado delas, tenta-se destruir a cultura que não as abrange na prática (ainda que o possa potencialmente); é o meio mais fácil, a opção seria tentar actualizar a cultura para que encaixe as expressões que estão presentes mas não foram integradas ainda. Mas essa destruição parte já da descrença no Absoluto, e, o que é pior, fecha as bases que permitem inteligi-lo, na medida em que complexifica as informações presentes, tornando a busca pelo conhecimento mais inacessível e, portanto, minando ou a curiosidade ou mesmo os meios de acessar qualquer das 4 portas, discutidas no tópico 2. Não se torna impossível, e estes tratados são depoimento disso, mas se torna altamente improvável para cada vez mais pessoas.
Para reordenar a conotação de "criação cultural", é preciso primeiro retomar a confiança na verdade. Já mostrei o que seria o Ser. A Filosofia Concreta do Mário Ferreira dos Santos mostra, sob novos argumentos, que o Ser preexiste ao resto. Também o dizia Aristóteles ou São Tomás de Aquino. No caso deste tratado, é mostrado a partir do Conhecimento Total. Então, de um lado existe esse fundamento de tudo o que existe, que está no nível do Absoluto; de outro, temos os fatos que ocorrem na vida concreta. É possível duvidar da possibilidade de existência do mundo concreto, como no caso dos solipsistas, esse tópico será tratado em "sentimentalidades". Mas, a princípio, tem três casos específicos que fomentam essa dúvida.
O primeiro é o fato de que não conhecemos todos os fatos, mas falamos e ouvimos sobre eles ou sobre uma interpretação de conjunto, como a História; ora, eventualmente supostos fatos que apoiavam ideias que gostamos de repente se revelam falsos: nunca foram fatos, e só chegou a nós por meio de imagens e ideias. No fato não estava o falso, mas na narrativa. Daí nasce a descrença.
Também na velha questão: "e se um esquizofrênico (ou outro distúrbio neurológico afim) diz que existe uma pessoa aqui que pra mim não existe? Significa que a verdade dos fatos é relativa", podendo acrescentar o corolário "está tudo na nossa mente". Vamos confrontar essa situação com uma segunda: imagine um mendigo recém-aparecido que te diz que está para acontecer uma guerra civil no país envolvendo duas facções. É possível dizer dele a mesma coisa que se disse do primeiro. Como retomar a confiança na verdade dos fatos, se, assim como eles, também em você ou em mim podemos estar "vendo algo que não existe" sob alguma influência neurológica ou psicológica? Contexto. Primeiro, apesar do uso excessivo como metáfora tomada como se fosse literalidade, a esquizofrenia só gera problemas na percepção dos sentidos nos momentos de distúrbio, que em geral são momentos de exceção, não de regra. Segundo, a tendência natural é buscar o consenso para a solução dessas questões, ou seja, para saber se o que o sujeito diz é verdade, consulta-se não mais a sua própria visão, mas a de outras pessoas para ter uma estimativa que gere o senso de veracidade. Meu professor Olavo de Carvalho teorizou e encarnou o exemplo de que essa é a solução covarde, porque não resolve o problema, apenas o esconde e tenta-se livrar-se da responsabilidade de resolvê-lo. Ora, para além do consenso, existe o contexto. Primeiramente os próprios sentidos serão a base para poder acreditar de imediato ou duvidar do que foi dito. E em seguida, será o contexto, ou seja: um sujeito em surto esquizofrênico no mais das vezes não está tranquilo, apesar do caso do filme Uma mente brilhante. Então, seja pela circunstância presente ou o histórico passado, descobre-se o encaixe correto da afirmação: ou ela parte desde uma observação que vem dos fatos, ou ela parte de um distúrbio cerebral. A verdade já está nos fatos, mas, novamente, pode não estar no nosso conhecimento sobre eles. Sem essa factualidade contextual, podemos perder, em casos de exceção como esse, a compreensão exata. O mesmo ocorre com o caso do mendigo: ele pode ter só um mendigo, como pode ser alguém que fugiu de uma dessas facções e conhece de fato os planos que estão por ocorrer. Pode até mesmo ter sido alguém rico, mas que teve que largar tudo para sobreviver. No mais das vezes, não teremos acesso ao contexto, e, portanto, resta saber dosar a confiança e buscar, se o assunto é relevante para você, medir não só o contexto de quem falou, mas do que foi falado. O consenso em nada ajudaria, sobretudo no segundo caso: como diz Olavo, toda descoberta nasce da ação solitária e, quanto maior a novidade, seja porque não foi descoberto ainda, seja porque a cultura do seu meio não tem esses conhecimentos, menos será acreditável enquanto fato e mais a coisa recai na confiança para com a pessoa. Platão mostra no Sofista o quão difícil é distinguir essas coisas, e, implícito no diálogo, está toda a necessidade de conhecimento sobre os contextos de cada coisa parecida para poder definir a coisa mesma, isto é, se é verdade ou não. Felizmente, no mais das vezes os fatos não precisam de toda essa investigação.
Se essa argumentação foi suficiente para retomar alguma confiança nos fatos, apesar dos casos de exceção comuns na nossa cultura que tentam quebrá-la (mais disso será feito, como dito, no tópico de solipsismo), podemos seguir adiante.
Provamos o Conhecimento Total que permite todos os fatos de existirem; provamos a existência dos fatos. Agora podemos embarcar no terreno ambíguo das categorias intermediárias. Bom, como não temos como ter posse do Conhecimento Total, porque ele, via de regra, é imenso demais para caber num cérebro humano, então necessariamente todo e qualquer conhecimento, incluindo toda e qualquer ciência, está definitivamente encaixado no plano cultural, ou no plano das categorias intermediárias. Ainda que criássemos as ciências perfeitas capazes de atingir, cada uma, uma parte específica do Conhecimento Total, provavelmente seria excessivamente complexa para o processamento de uma só mente, e, no mais, no melhor dos casos estaria num "computador divino" com uma "IA perfeita" que fizesse tais processamentos, o que também é improvável sem uma tecnologia perfeita que rompa sobretudo com a primeira lei da termodinâmica, de perda de energia de um sistema, para que possa ter eficiência total. Fora circunstâncias desse tipo, estamos "presos" no mundo da cultura, onde tudo é relativo, exceto pelo fato de vislumbrarmos o Absoluto.
Dado que todo o nosso conhecimento é necessariamente cultural, ou ele é todo Falso ou ele é todo Verdadeiro. Ao ver pelo lado da falsidade, admite-se a relação com o Absoluto. Como a história das ciências e mesmo a história das culturas mostram, nós trocamos de conhecimentos como o cobra de pele ou o camaleão de cor. Admitir o lado da veracidade implica no fato de que, ainda que incompletos, na medida em que se ancoram em fatos, no natural, eles revelam algo da realidade. Prevê coisas, em geral, com cada vez mais eficiência, mas, sobretudo, serve para a nossa sobrevivência individual e coletiva. Uma teleologia do conhecimento é comentada no tratado de religião.
Aqui interessa o seguinte: se o Absoluto preexiste a todo o universo concreto, sendo, ele, apenas uma das ilimitadas possibilidades do Absoluto, perante o Absoluto, tanto as categorias culturais quanto as categorias naturais estão no mesmo nível de possibilidade. "Somos da mesma matéria que os sonhos", diria Shakespeare. Todo o universo dos objetos mentais, portanto das categorias intermediárias, se torna, com isso, igualmente Falso ou igualmente Verdadeiro. A diferença é: se estamos vivos, isto é, se esse conhecimento pode ter posse por uma consciência no mundo concreto, ele se torna verdadeiro na medida em que se coloque o contexto. Assim, por exemplo, todas as narrativas de Shakespeare e seus personagens são verdadeiros, mas dentro do escopo das peças, para além de qualquer analogia para que possam servir. Assim também todo o conhecimento científico do presente, desde que esteja coerente - à diferença de dar a resposta errada para uma equação de verdade já conhecível - é verdadeiro, conforme o contexto dos fatos de que partem. Também o esquema cosmológico de Ptolomeu era verdadeiro, a partir do seu conjunto de fatos, e também a tribo de Malinowski é verdadeira, considerado o contexto. Mas aí entra um fator a mais: como depende da consciência que toma posse do conhecimento, ela pode estar abrangendo o máximo de contexto que lhe é permitido ou não. No segundo caso, sua afirmação se torna limitada e, portanto, falsa em relação ao que existe, ainda que as categorias com que fala sejam verdadeiras dado o contexto enquanto limite. Se, ao contrário, busca, conforme os seus recursos totais, expandir suas verdades até o máximo possível, sua afirmação será verdadeira. Independentemente, porém, da consciência humana, todas as categorias, objetos mentais, se tornam verdadeiros, uma vez que se considere o limite da qual nasceram. O tratado de cultura e o tratado de estética ilustram esse princípio. No cristianismo, essas duas possibilidades humanas são chamadas de inocência e ignorância: não se pode exigir de uma pessoa sem recursos que saiba o que ela não tem como saber. E nem por isso ela está mentindo. Do mesmo modo, resolve-se a questão de mentir para proteger alguém de um crime em que é acusada, mas que se sabe que não cometeu: colocado o contexto, não foi um ato de mentira, mas de verdade. E coragem.
Isso deve ser suficiente para demonstrar as categorias intermediárias como a somatória dos conhecimentos possíveis, soltos e agrupados em todas as possibilidades, perante os quais alguns condizem com um menor número de fatos, outros com um maior número de fatos, e, afinal, os Conhecimentos Totais são as categorias intermediárias elevadas ao seu nível Absoluto, abaixo apenas do próprio Ser que as gera, a estas e àquelas. Para ilustrar, a verdade do esquizofrênico diz respeito só a si ou, quando expandido em seu sentido mais genérico, à esquizofrenia enquanto condição; mas apontar para um fato verdadeiro em si mesmo é universal; já as categorias intermediárias, ou a cultura, podem ser mais ou menos abrangentes: nossa cultura permite ver que a dos melanésios é limitada, portanto menos abrangente do que a nossa. E, de quebra, resolvemos a questão da amoralidade científica: você pode não se responsabilizar por mudar o grupo cultural que está estudando e que, portanto, é menos abrangente do que o seu, mas não pode negar para si mesmo o fato implicado no próprio ato do estudo, isto é, que o seu grupo é mais abrangente e poderia encaixar o grupo estudado ao invés de apenas estudá-lo como animais em um zoológico. Por outro lado, a defesa do grupo estudado acima do grupo de onde parte termina por revelar na amoralidade uma imoralidade, porque, como o caso do Bagno, revela um fechamento do coração que optou pela parcialidade do grupo a que o estudo aponta, mas não ao grupo para o qual esse estudo se dirige e de onde, até mesmo, é financiado.
No mais, imagino que a demonstração acima apoie não apenas a perda da conotatividade maliciosa ao chamar tudo de "criações culturais", porque são mesmo, mas isso não é problema nenhum, como também é uma tentativa de expressar a problemática nascida entre Platão e Aristóteles e levada adiante por dois milênios de discussão sobre a existência ou não dos nomes. Em suma, realistas e nominalistas. Daqui eu respondo que existe primeiro o Absoluto, tanto do Ser quanto dos Conhecimentos Totais (a causa e a finalidade); neles existem os fatos (a matéria), que são apenas uma de inumeráveis possibilidades das categorias intermediárias (as formas). Ou todas as categorias intermediárias e os fatos concretos são falsos e apenas o Absoluto é verdadeiro, ou, por medição para com o Absoluto, todas as categorias intermediárias e os fatos concretos são verdadeiros simultaneamente. Como estamos aqui, a segunda hipótese é a verdadeira. Aos que prefeririam a primeira hipótese, resta resolver a questão solipsista, o que será feito depois.
4.3.2- O fim da mentira absoluta
4.3.2- O fim da mentira absoluta
É apenas um corolário relevante na nossa cultura, mas ficará não como um subsubtópico, mas como o posterior: colocada a ideia da harmonia entre o Absoluto, as categorias intermediárias e o mundo concreto, ou o natural, chega-se à conclusão de que não existe mentira absoluta.
Eu prometi, no tópico anterior, revelar que nem mesmo a expressão "não existe verdade absoluta" é propriamente mentira, ainda que provemos que a verdade absoluta existe e é o próprio fundamento da possibilidade de afirmar isso. Ora, chamei de posição existencial e real, no tratado de inteligência, o esforço por retomar a possibilidade de afirmação da frase, isto é, o seu contexto. Nesse caso, a afirmação da inexistência do absoluto implica não uma realidade objetiva observada, mas uma posição subjetiva, aliás, amplamente acreditável. Assim como veremos no solipsismo, é possível acreditar verbalmente em absurdidades, e isso não deixa de ser um fato real, não a afirmação feita, mas a possibilidade de crença e de ações a partir dessa crença. Assim, a afirmação da inexistência da verdade absoluta significa em primeiro lugar a descrença na própria possibilidade de chegar a verdades mais gerais, porque as de fatos particulares e pequenas verdades genéricas corriqueiras, ainda que se negue verbalmente, usam-se o tempo inteiro e toda a vida do sujeito depende disso; em segundo lugar, portanto, a desistência de tentar chegar a elas; em terceiro lugar, trata-se de um paradoxo despercebido, pois ao afirmar "não existe verdade absoluta", espera-se que seja uma verdade absoluta.
Novamente, as três posições mencionadas não invalidam a própria frase, mas a colocam em um contexto mais seguro. Podemos mesmo expandi-lo e dizer-se que quem usa essa frase não descrê da existência das categorias intermediárias, apenas não atinou para o nexo que existe entre as categorias com que se trabalha e as superiores de onde provêm. Assim, por exemplo, um estudante de antroplogia ou de psicologia pode afirmar a frase, ou uma mais suavizada, "cada um tem a sua verdade", ainda que confie nas verdades da própria psicologia sem o perceber. Também não deve perceber que ao assumir as verdades da psicologia assume-se também a de ciências mais abstratas e que a fundamentam, como a psicologia em sentido filosófico, e as mais materiais que a alimentam, como a neurociência. Daí que a frase expressa o limite de horizonte de consciência de uma parcela da população, sobretudo entre a envolvida com os estudos, que, daí por diante, fecha o próprio coração para encontrar verdades mais profundas. Podemos falar, então, em mentira, no sentido estabelecido no tópico anterior: enquanto consciência, fechou-se para si próprio a possibilidade de adquirir mais conhecimentos que, no caso do estudioso, estavam-lhe presumivelmente disponíveis, mas são ignoradas de propósito, ainda que tenha algum grau de inocência de acordo com a cultura reinante no seu ambiente. Uma cultura pode abrir, como pode fechar possibilidades de investigação, e, no segundo caso, só os corajosos em desafiar a opinião dominante podem ter quebrar a barreira do espaço de conhecimento em que vivem.
Assim, mesmo as frases que buscam refutar as possibilidades mais altas da inteligência podem ser recolocadas em seu contexto de origem e permitir não apenas continuar a investigação, como acrescentar à investigação do tema objetivo a de como uma cultura se apresenta para tentar fechar essas possibilidades. Isso vale para "não existe verdade absoluta", como para "toda verdade é relativa" ou "cada um tem a sua verdade" ou "nenhuma verdade é melhor do que a outra" etc.. Mesmo todas as questões que colocam dúvida na capacidade de apreensão de verdades acaba por se revelar, no máximo, uma limitação sensível, mas que, pela própria possibilidade de percepção da questão, permite trabalhar esse limite sensível na distinção racional. É o caso das imagens ambíguas de toda sorte, cuja verdade não é nem a versão A ou B ou seja lá quantas tiverem, mas sim a descrição de todas as suas possibilidades e o fato de que essa imagem em particular ou foi trabalhada artificialmente para revelar esse paradoxo (haja capacidade humana!) ou é um limite sensível em algum caso particular, mas que pode ser analisado racionalmente. Também, como essa imagem, as questões paradoxais e céticas, que, porém, não serão avaliadas em detalhes nesta edição do manual, exceto de modo geral pela noção de solipsismo.
Passamos, com isso, do paradigma "não existe verdade absoluta" para o paradigma "não existe mentira absoluta", porque toda mentira pode ser traduzida em alguma verdade pelo encaixe no contexto adequado. E mentira se torna a ausência de busca do máximo de abrangência possível no contexto a que se possa captar: desde uma visão centrada apenas nos próprios sentimentos como medidores do mundo externo, até a abrangência de uma experiência, complementada por documentação e depoimentos, que consigam ora abranger o máximo de fatos, ora encaixá-los em categorias cada vez mais gerais, sem perder o fio da relação com as mais concretas e com os fatos concretos. No fundo não é outro o processo platônico: consiste em partir da palavra (uma ideia) como remetente de um objeto firme nas categorias intermediárias superiores, partir dos fatos que apontam e garantem a veracidade da ideia, daí dividi-la em categorias intermediárias de nível mais baixo para torná-la pensável e inteligível com maior grau de certeza e consciência; em seguida, ele sobe de volta para a ideia de onde partiu, que agora está renovada com conhecimento categorizado, ordenado, com as partes relacionadas entre si, tornando todo o assunto abarcado imensamente mais claro.
Por fim, antes de entrarmos no tópico mais ambicioso deste manual, o 5º, convém passarmos por uma nota, ainda dentro das implicações da ideia de Ser. Trata-se das "ciências ultrapassadas".
4.3.3- Ciências antigas e história da ciência
4.3.3- Ciências antigas e história da ciência
Hegel na História, como Carpeaux, no seu prefácio à sua História da Literatura Ocidental, mostra o processo de evolução do pensamento desde a simples coleção de fatos até a categorização deles de modo a ordená-los, como ao tentar montar uma biblioteca por temas, tornando-a mais acessível e inteligível, até, por fim, o processo de meditação do próprio processo geral por que passa a ordenação. Do ato de contar ao pensar como se conta ao refletir sobre o que se está fazendo quando se conta e para que serve contar.
Não tenho ainda uma cronologia precisa, mas me parece ser atribuível a Giambattista Vico o começo da meditação ordenada e mesmo filosófica da História. Porém, foi por volta do século XIX em diante que as Ciências Humanas, ou Geisteswissenschaften, Ciências do Espírito, passaram a ganhar os holofotes na academia lado a lado com as Naturwissenschafter, as Ciências Naturais. Daí o florescimento da produção da História, e, nessa ênfase de um pensamento filosófico que tornasse a História mais útil do que apenas uma coleção de fatos, seja com Hegel, seja com Marx, seja com Thomas Kuhn, surgem as influências filosóficas de interpretação histórica, diretas ou indiretas. Ora, a ênfase nas ciências humanas e o acréscimo nas produções cientificas em geral, portanto das sucessivas derivações em subáreas, gerou, dentre outras coisas, a intersecção entre História e Ciência, de onde nasce a História das Ciências e História da Ciência como um todo.
Até o momento a mais antiga a que tive acesso, mas sei que devem ter tido anteriores, é a já clássica History of Mathematics, de Carl Boyer, publicada originalmente em 1960. Mas o livro de Thomas Kuhn, analisando já o fenômeno da historiografia científica, é de 1962. Seja como for, podemos datar por volta do século XIX e XX a ênfase na documentação do segundo tipo (categorizado) sobre a produção científica. Antes disso, não é que não houvesse "História", não a disciplina, mas os fatos, nem que não houvesse "Avanço": uma ciência é essencialmente uma tradição passada entre cientista-discípulo, onde o primeiro assume também a face de professor e o segundo a de futuro cientista, e passa adiante os documentos e seu depoimento de acordo com o que seu talento, desejo e recursos foram capazes de abranger.
No estado em que nos encontramos atualmente, estamos influenciados por uma narrativa científica que, me parece, é pouco abrangente. Ela não considera: (i) a sua própria posição filosófica e contextual, portanto (ii) a posição das demais épocas, o que acaba por (iii) gerar um acréscimo crescente de confusão na cultura como um todo. Gostaria de comentar esses três tópicos.
Tomarei de inspiração a História da Química, do brasileiro Juergen Heinrich Maar, que muito me agrada, porque sua perspectiva é externalista, isto é, ele tenta contar a história da química não apenas para químicos, mas para a cultura em geral, montando pontes entre várias áreas. Seu comentário abarca desde os pré-socráticos até os alquimistas, até a narrativa de Goethe sobre Fausto, e logo no começo do livro vemos um soneto de sua autoria, aliás, muito bom. Sendo o Maar um químico acadêmico de profissão, sua postura é a de um estudioso da cultura, o que é raro nos dias de hoje - e dir-se-ia dispensável. Afinal, para praticar uma ciência não é preciso saber, a princípio, nada além dela própria, como também seria estranho exigir de um pintor que soubesse Física de Materiais ou de um cordelista que, para dominar sua arte, estudasse pintura. Mas também é inegável, como o depoimento de Heisenberg ilustra em "A parte e o todo", que uma compreensão para além da sua área específica abre insights mais abrangentes e mais gerais, capazes de renovar a área em que se está. De modo geral, um livro renovador não é publicado (só) na Academia como um artigo ou paper, mas sim como livro, e exposto ao público em geral, isto é, é publicado para a cultura. Isso implica implicitamente uma maior abrangência. Mas a produção contemporânea tem uma ênfase excessiva na visão míope, focalizada apenas nas disciplinas, o que, por sua vez, embota a produção e torna-a, muitas vezes, repetitiva, a aplicação dos mesmos princípios a um novo caso A, B, C, D, da qual a mesma conclusão é extraída.
Interessa esse comentário lateral porque o caso do Maar é um esforço sincero por abarcar a história da cultura, e interpretar cada momento histórico, conforme as lições hegelianas e diltheyanas, pela sua lógica interna. Mas ele não consegue largar os anos de profissão de químico, e comete, apesar da abrangência nas informações, o mesmo erro interpretativo que os demais colegas fazem. Esse erro consiste em enxergar os objetos do passado como se fossem iguais aos objetos do presente. Eu delimito o objeto Química tal como é entendida na sua prática hoje e então meço o passado como os vários passos para se chegar ao objeto presente, de onde brotam partes aproveitáveis e partes inúteis. Também quando olho para o sentido de uma vida bem vivida, partes serão as que contribuíram para chegar lá, partes serão os impedimentos, obscurantismos que vira e mexa voltam, como o arquétipo da sombra, para desfazer os progressos. Como na narrativa de uma história com final feliz, ao modelo comum de Jung ou Joseph Campbell e discípulos, surge o mestre, ou eu-superior, ou Espírito, o vertical, e os amigos, ou os cientistas da mesma área, ou os peers, ou o horizontal, que colaborarão nessa missão rumo à transformação do sujeito em um eu-superior.
Não posso dizer que essa visão está errada (até por limitação metodológica!), mas ela tem um limite bem explícito. Como o objeto mental já foi definido previamente - e, em geral, implicitamente -, as particularidades do passado que não se encaixem nele não são visíveis como parte de um conjunto coerente; apenas como a sombra, a negatividade que se precisou limpar para purificar a joia do presente e oferecê-la ao futuro que a purificará ainda mais. A visão é justa, porque o que se está contemplando na ideia de Química é um objeto mental que tem a sua versão perfeita perante os Conhecimentos Totais. Assim, o trabalho do Maar não só é maravilhoso pelas conexões que ele estabelece com a cultura, mas pela escolha filosófica que serve para ter uma visão justa do que chamamos de Química. Nada impede, porém, que ela venha a se tornar outro objeto no futuro, e, não apenas impurezas serão tiradas, mas partes inteiras serão descoladas para a composição desse novo objeto. Talvez nem receba mais o nome de Química, ou talvez receba e gere ambiguidades.
O fundamento melhor do que estou fazendo aqui fica mais explícito em tratado da cultura. É a ideia dos espaços, ou intenções, que estão sendo preenchidos numa ideia. Aqui, porém, posso fazer um comentário mais breve. A Química é contrastada, por exemplo, com a Alquimia e a Filosofia Natural grega. Vamos avaliar as três, em seguida, o mesmo exemplo com a Física.
A Química contemporânea, como as ciências do nosso contexto, está dentro do esquema de Progresso iniciado por Hegel. Dentro de um quadro de um ceticismo começado pela época de Descartes, passando por Kant, mesclado ao acréscimo de tecnologias de extensão dos sentidos como o microscópio e o telescópio, ambos do século XVII que, somados a um acúmulo imenso de observações, geraram uma visão de uma ciência que transcenda os sentidos do homem, e o refutem, se preciso. As "verdades mais altas" não vêm mais da razão elevada ao nível do Ser, como, aliás, iria querer Hegel, mas, ironicamente, aos sentidos estendidos pelo aparato de laboratório, de acesso caro. As verdades formais e finais da metafísica e da religião, que eram inacessíveis, mas ao menos verossímeis por estarem imbricados na experiência comum (isso será mostrado em sentimentalidades), são substituídos - não enfatizados, substituídos - por verdades materiais e eficientes: da partícula simples do Ser à do Big Bang, do Átomo de Demócrito aos átomos de Mendeleev. Essas verdades passam então por uma mastigação prévia e são repassadas em imagens e na escola para que suas ideias mais fundamentais se tornem mais verossímeis. Daí, em consequência, a visão comum da sociedade perde o seu caráter formal e final e é substituído pela ênfase material e eficiente: jovens hoje não procuram mais saber o que é o Amor, porque deduzem que trata-se apenas de reações fisiológicas, ainda que seu sentimento interno tente mostrar algo mais, que ele tenta refrear, sem conseguir. Nesse contexto, soma-se a expansão das universidades, da produção científica, o nascimento, portanto, de subáreas, a necessidade de ocupá-las com especializações cada vez mais especializadas - portanto leva tempo e recursos para se obter, numa sucessiva fragmentação do conhecimento. Não entro nas questões que envolvem o coração quanto aos conflitos de ciência e religião, pelos motivos mencionados neste parágrafo, e que, portanto, fecham ainda mais a possibilidade de compreensões mais abrangentes.
Absolutamente nada disso estava presente nem no contexto grego nem no contexto da alquimia.
O contexto da Filosofia Natural grega é o início das investigações sobre a natureza para além das explicações simbólicas. Nessa época, as 4 causas se somam, se mesclam e se misturam, e foi Platão quem primeiro distinguiu esse problema (Sofista, 242d-e, 267d), seguido e formalizado por Aristóteles. Isso significa que o átomo de Demócrito era ao mesmo tempo uma palavra para designar o Ser que há nas coisas e também a origem comum da matéria, que até então era associada a elementos distintos. O poder desta visão está sobretudo nesse processo de procurar um princípio comum a partir dos elementos díspares, seja do mundo visível, seja da explicação corrente, dos elementos primários. Para a História da Química , interessa aqui não as habilidades intelectivas que envolvem os processos de descoberta das ideias, mas a ideia de átomo, que, historicamente, gerou a inspiração de onde nasceu o átomo moderno.
A Alquimia, por sua vez, é ainda mais complicada. Quase 1500 anos depois, ela recebe de legado uma grande quantidade de informações sobre misturas e processos que diríamos químicos. Mas seu interesse nasce pela ambiguidade de quatro intenções distintas: (i) a da capacidade de captação de princípios primeiros (como os gregos), (ii) a descrição do mundo terrestre como símbolo celeste e vice-versa, (iii) a descrição de ambos, mundo terrestre e celeste, como símbolo dos movimentos do sentimento, vontade e inteligência, corpo, alma e espírito, (iv) um receituário de produção e análise de misturas. Literalmente hermética, pois prenunciado por Hermes que o que está em cima é como o que está embaixo, a alquimia seria o equivalente contemporâneo de usar os estudos da Química e Física ao mesmo tempo para dar uma descrição do Cosmos tanto no sentido material e eficiente quanto formal e final, utilizar o mundo terrestre, o mundo celeste e as possibilidades humanas como símbolo para essa descrição. Um simbolizaria o outro e vice-versa. Além, é claro, da produção tecnológica gerada por ambas. As questões mais comumente faladas de elixir da vida eterna e transformação de um metal abundante e simples como chumbo em ouro tem duplo sentido definitivo desde o grande alquimista Paracelso: significa, de um lado, a versão formal da coisa, isto é, o desenvolvimento da inteligência simbolizado como tornar-se ouro ou viver eternamente (como nas religiões se fala em vida eterna); de outro, é a mesma busca da ciência contemporânea de uma eficiência perfeita, da quebra da 1ª e 2ª lei da termodinâmica. Se os alquimistas tinham ou não materialmente falando misturas capazes de transformar chumbo em ouro, eu é que não tenho como saber. Mas os três primeiros espaços que ela ocupava foram abandonados pela Química (mas não o misticismo que nos move até hoje, no quarto espaço, por uma eficiência perfeita ou mesmo a vida eterna material), o que significa que a Alquimia continua cumprindo o seu papel para as outras três funções, porque a Química não a cumpre. E não por acaso, o próprio Maar reconhece, não sem desgosto, a existência de grupos obscurantistas no Sul, no caso, um grupo neopitagórico. É que o mesmo ocorre com o pitagorismo - vide Mário Ferreira dos Santos -, com a Alquimia e mesmo com a Astrologia. A Química só se "livraria" desse misticismo se o abrangesse entre suas pesquisas. Como o Maar demonstra, e ele é o exemplo mais aberto e abrangente que conheci, isso não tem previsão de acontecer. Se é que é possível, mas eu suspeito, pelos esforços do físico e místico Wolfgang Smith, como em "Ascensão vertical", que seja.
No caso da Física, que é uma área que tenho um pouco mais de proximidade, a confusão é igualmente grande, talvez até maior. Diferentemente da Biologia, que é uma ciência marcadamente material, a Física e a Química, duas dessas três que compõem as ditas Filosofias Naturais ou Física no sentido clássico, são como irmãs e têm um histórico parecido. A Física mais do que a Química, porque tomou para si as investigações do macrocosmo e do microcosmo na busca por uma unidade dos dois mundos. Como a Química, a Física tem sua sombra, que é a Astrologia. E como sua irmã, Alquimia, ela também subsiste, pelo mesmo motivo. Não se fala muito, mas, de modo geral, os físicos do passado foram astrólogos ou alquimistas: até onde sei, Ptolomeu, Kepler, Leibniz (alquimista), Newton (ambos). Alquimia, no caso de Leibniz, pelo viés rosa-cruz, porque essas escolas esotéricas, como os Fedeli d'Amore que participou Dante, os redutos onde se aprendem as técnicas do pensamento abstrato, isto é, o tópico (i) presente nas reflexões gregas e na alquimia. Astrologia porque, para além da prática divinatória, praticar o que chamamos de Física era tentar fazer o salto da observação empírica para a captação desses princípios, dessa unidade formal da existência. Hoje se sabe que Newton foi alquimista, que sua obra tentou ser não só um progresso da Física, como se ele soubesse que a Física fosse se tornar o que ela é hoje, mas sim uma visão integral da causa material da origem do mundo, como descreve Aristóteles na Metafísica, da onde ele deriva uma causa formal e final, isto é, Newton chegou mesmo a tentar alçar seu pensamento não só a uma metafísica, mas à construção de uma religião natural. Leibniz teve, como Wolfang Smith tem, pretensões mais modestas. Mas a Astrologia, portanto, era uma mescla entre os tópicos (i), os elementos da visão celeste que alimentavam a alquimia em (ii) e (iii), e (iv') a prática divinatória através da visão do mundo celeste tal como conhecido na época. Sobrou da Astrologia os elementos de investigações que seriam para (ii) e (iii), mas (i) e (iv') possuem espaços, novamente, sem preenchimento. As pessoas buscam um senso de unidade e compreensão das coisas, como também ficam confusas, com medo, e buscam ordem no caos da sua vida. A astrologia contemporânea, a dita de João Bidu, dos horóscopos, serve para preencher ambos em nível popular, e a Alquimia e demais grupos esotéricos tentam preencher a primeira para quem queira se aprofundar. A prática, porém, mais séria da Astrologia, aliás, Astrologias, porque existem várias, subsiste: para além da discussão com físicos contemporâneos, ela se baseia na hipótese de que o mundo observado para os modelos que construíram os esquemas simbólicos de mapas é suficiente, independentemente das descobertas que se possam fazer pela extensão dos sentidos. No sentido mais íntimo ainda, se baseia na hipótese ou de que materialmente a presença dos planetas mais próximos afeta a vida corrente ou de que esse mapa simbólico expressa o processo da ascensão da inteligência aos graus mais abstratos, como, aliás, é o que significa a Divina Comédia de Dante, um mapa cosmológico, religioso e literário de sua época.
Não interessa nada dessas questões à prática científica contemporânea, porque ela é, como falei, um objeto próprio, distinto dos anteriores. É de se imaginar, tomando o trabalho do Wolfgang Smith e do Olavo de Carvalho como amostras, que possa vir a nascer novas sínteses no futuro que tragam de volta o mundo externo como símbolo do mundo interno e em particular do processo de ascensão da inteligência às camadas mais altas. Isso implicaria o surgimento de novos objetos que abrangessem tanto os antigos quanto os contemporâneos e isso, se ocorrer, será para além da minha época. É difícil, porém, conciliar a rápida produção das ciências com sínteses abrangentes, e isso reduz imensamente a força do símbolo ancorado nas ciências. Símbolo é, como a metáfora, mas mais abrangente que ela, tomar um objeto como imagem que representará outro. A metáfora guarda apenas uma qualidade, e o símbolo promete que as demais qualidades também servirão de metáforas. Assim a serpente como símbolo do diabo, ou a águia com símbolo de Deus, e a pomba como a do Espírito Santo etc.. Quanto mais características se puxar de um dos dois, mais se conhece de ambos os objetos pela ponte estabelecida analogicamente. Isso é assunto para um ensaio próprio do assunto, mas o caso da Dra. Jill Bolte Taylor ilustra a tentativa de composição de uma explicação moral a partir da observação do cérebro: no começo ela parte do uso da ideia de lado esquerdo e direito do cérebro, racional e emocional, e, de repente, em alguns anos, tem que dividir-se em quatro. Pelo seu depoimento, vê-se o quão confuso é o esquema, e, pela tão rápida mudança entre dois esquemas bastante distintos, é possível elaborar a suposição de que em alguns anos a descrição do funcionamento do cérebro talvez tenha não 2 ou 4 partes, mas 8 ou 16, ou 256, ou que praticamente inverta a sua compreensão. É que o cérebro é investigado com aparelhos que estendem os sentidos, e enquanto o dito simbolismo natural, mesmo o astrológico e alquímico, que usam de recursos mais especializados, se prendem a objetos sensíveis e/ou a modelos fixos, independentemente dos avanços específicos nas respectivas áreas.
Novamente, à prática científica nada interessa nada dessas questões. E, na verdade, a ciência poderia muito bem prosseguir sem elas, se não houvesse, como o próprio caso da Jill Bolte Taylor, a tentativa de preencher os espaços que ela não está preparada para preencher. Com mais ou menos intenção ativa, cientistas como a Dra. Taylor, como Marcelo Gleiser no nosso país, epígono de Carl Sagan e seu discípulo Neil deGrasse Tyson, e inumeráveis cientistas, de Richard Dawkins ao nosso Sidarta Ribeiro, nas mais diversas áreas, de exatas ou de humanas, que jogam suas produções específicas como fonte de compreensões mais abrangentes do que se esperariam e, com isso, geram uma confusão mortal na cultura como um todo, minando o acesso real de mais pessoas às ideias mais altas. É uma sucessão de vexames que só não merece um riso público porque nem o público nem os debatedores perceberam. O que sobra de toda esse metralhamento de informações descontextualizadas é inteligências destruídas e que perderam acesso à própria inteligência, em particular, perdendo o senso de causa formal e final, daí por diante tentando enxergar tudo apenas pelo viés material e eficiente, o que é impossível, e seus sentimentos lhe denunciam isso o tempo inteiro.
Ironicamente, apesar de todo o avanço material, nas ciências e na vida, filosoficamente regressamos ao tempo da Grécia Antiga. E, também ironicamente, é da tradição iniciada pelo Sócrates brasileiro, Olavo de Carvalho, que se busca retomar as bases da inteligência para distinguir mais uma vez aquilo que Platão e Aristóteles já tinham feito há 2400 anos, e, diga-se de passagem, como veremos no tratado de religião, aquilo que, como prenunciei neste tratado como a 4ª porta para a Filosofia, a religião, sobretudo a cristã, já havia revelado gratuitamente. Se subsiste a chance de retomar esse fio perdido do pensamento racional é porque a raiz capaz de gerar até a sua inspiração, o seu insight, estava dada mesmo a zé-manés como Olavo ou seus discípulos, dos quais eu me incluo. Sócrates, Platão e Aristóteles, de modo geral, estavam na elite de talvez o país mais inteligente do mundo na sua época; nós estamos num país praticamente fora de toda a discussão Ocidental, que até agora entra apenas como uma nota de rodapé como colônia do povo de Camões. E, ainda assim, se essas ideias nasceram, é porque o fundamento que as permite nascer havia sido dado, mas isso é tema de outro tratado.
O que, porém, é tema deste tratado é, como uma nova visão de Ser, uma nova visão de dialética, que talvez possa dar alguma esperança, apesar de ter ela própria a sua sombra inevitável. Apesar da ousadia, arriscarei chamá-la de dialética da eternidade, porque é tentativa de tirar proveito tanto da dialética clássica formalizada por Aristóteles quanto da dialética temporal inaugurada por Hegel. Entre a descrição de um mundo lógico, fixo, imutável, e a descrição da lógica necessária do movimento desse mundo lógico, móvel e mutável, deve nascer uma visão que abranja o "atempo" e o "tempo", não numa projeção feita para o futuro, mas num "eterno presente", como diria Louis Lavelle, onde os seres são convocados a participar dessa harmonia total. O passei que fizemos nesta seção como um todo, e nesta subseção em particular, é uma amostra do que mais adiante será exposto de modo mais geral.
5- Dialética atemporal, temporal e eterna
5- Dialética atemporal, temporal e eterna
Antes de mais nada, como este capítulo é o mais ousado, é preciso dizer, de antemão, que ele partirá de bases imensamente imperfeitas. Como enunciado no próprio princípio do Ser, do tópico anterior, sobretudo em 4.3.2, e, aliás, como é comum nas ciências, eu colocarei uma síntese que pode se basear, em parte, em apontar erroneamente alguns detalhes. Eventualmente espero poder preencher esses erros com acertos: não imagino que venha a gerar uma nova síntese, porque esta aqui já está ancorada em fatos e com o vislumbre do Ser, de modo que fica posicionada no sustentáculo que a mantém produtiva, além da minha admissão dos meus limites, mas sim que será corrigida nos detalhes. Produzi, como a qualidade literária atesta, às pressas, e décadas antes do esperado, tendo em vista que não temos qualquer síntese abrangente para a nossa época. Aliás, temos, tem o Mário Ferreira dos Santos, mas ele só seria legível numa época que não passasse pelo vício contemporâneo explicado nem 4.3.3. Sendo assim, espero que a intenção que anima este tratado seja suficiente para abonar os prováveis pecados no qual temporariamente se ancora. Vamos começar o espetáculo.
A dialética hegeliana, ora aproveitada politicamente pela esquerda, ora pela direita, é, na verdade, uma fórmula que tem em si uma marca maligna. Hegel, como se mostra no ensaio "A razão na história", tentou literalmente descrever a Providência. Santo Agostinho e Leibniz também o tentaram, mas a descrição deles era partir da existência de um Sentido a partir do qual iluminar os sentidos particulares do presente; Hegel foi além, e tentou explicar como funciona a Providência e, pior, prever o Fim Último. Pela descrição da Providência, também descreveu o Apocalipse. Em outras palavras, historicizou o Apocalipse. A concretização de ideias abstratas costuma gerar problemas, mas isso é tema do tratado da religião. Pela regra hegeliana há o líder que encarna o Espírito de uma época e que move-O ao novo estágio da dialética do Espírito. O problema é que, uma vez que isso seja enunciado publicamente, esse processo não acontecerá mais de modo espontâneo: entra em jogo cada sujeito tomar para si a esperança de ser o líder correto. E, mais ainda, isso gera uma justificativa ainda mais potente do que a dos antigos faraós ou de César, que se diziam filhos de deuses. Agora existe uma "ideia racional", plena, que justifica a sua encarnação da deusa História. Mas isso pode ser feito tanto por Stálin quanto por Hitler quanto pela dupla Dugin-Putin, quanto pelo Estado Islâmico etc.. E pode ser Stálin, Pol-pot e Mao Tsé Tung simultaneamente, porque cada um representa o Espírito da sua nação rumo ao nascimento do Espírito do mundo. Tornam-se semi-deuses, infinitamente mais orgulhosos de si do que qualquer rei absoluto poderia.
Foi o meu professor Olavo de Carvalho quem estudou esse fenômeno em grau mais abrangente, nomeando-o de mentalidade revolucionária (breve conceituação neste artigo de 2007: https://olavodecarvalho.org/a-mentalidade-revolucionaria/). O seu horizonte de consciência enxergava nas ações políticas cotidianas esse escopo de 5 séculos do nascimento e desenvolvimento de um problema que, do século XX em diante, vimos eclodir com grande trauma, ainda presente na nossa sociedade. A visão de Maar da História da Química, isto é, mesmo nas ciências, parte do mesmo pressuposto de absolutização do objeto presente, removendo dele tudo o que é impuro rumo a uma pureza perfeita no futuro. Toda impureza é retrógrada, reacionária, e o presente passa a enxergar o passado apenas por aquilo que legou pelo olhar de hoje, de modo que, afinal, como já está presente, o passado não importa em nada. É o chamado cronocentrismo, pelo Olavo.
A dialética hegeliana, ao meu ver, ligou uma bomba-relógio que se aparenta já ter detonado, no século XX, na verdade apenas fez uma levíssima demonstração do que pode estar por vir. Afinal, o que Hegel concretizou não foi apenas a Providência, mas o Apocalipse. Ele acelerou o processo de chegarmos no Fim da História, como era, aliás, seu objetivo. Só que, talvez, imbuído de uma mentalidade milenarista, ele concluiu que o Fim da História seria a santidade total de todo mundo, ou seja, o Paraíso na Terra. George Orwell, Aldous Huxley e as distopias em geral preveem em comum a presença de um Estado hegeliano total. Com o avanço do conforto material, de que falarei depois, é provável que daqui para o Fim, se houver, o mundo cresça em conforto. Mas não em Espírito. Já previra Soloviev em 1900 em sua "Breve história do AntiCristo" que o fim do mundo não seria triste, mas, ao contrário, seria lindo e maravilhoso - mas vazio.
Cometendo um pecado, porém, devo dizer que também não acho que seja por acaso que justamente de Hegel tenha ressurgido a inspiração para o estudo do Espírito e das questões abstratas, que, sem ele, Kant teria destruído de uma vez por todas. De Hegel a Dilthey e Croce a Voegelin e Carpeaux, existe algo como uma linha sucessória que resgatou a dignidade humana, ao mesmo tempo em que não impediu a sua sombra maligna. Acho eu que a dialética do tempo nasceu do próprio São Tomás de Aquino, e sei o quanto me arrisco com essa afirmação. É que de Aristóteles para São Tomás aconteceu um fenômeno curioso. A forma da obra aristotélica é a de um tratado, ainda que elaborado sem o cuidado formal que poderia ter tido. É como um diálogo platônico colocado por extenso, com as perguntas já elaboradas junto às respostas. Não tem ainda a formalidade estrutural de um livro didático, mas tem um esforço por uma visão atemporal, ou seja, faça de um objeto fixo e ao ler você enxerga um objeto fixo. Não é o caso de São Tomás.
Tomás de Aquino postula 2 coisas, que me parecem ser o começo de dois vícios no raciocínio ocidental, uma vez tirados do contexto em que nasceram. O primeiro é a ênfase no intelecto que apreenderá a verdade. Eu imagino que dessa inspiração nasce Descartes e Kant. O segundo e principal é que São Tomás se inspira na forma euclidiana, no que será chamado de more geométrico por Espinoza, e, mais ainda, para falar do Ser como causa primeira. A sensação que gera ao ler, sobretudo, sua "Suma contra os gentios" é a de estar vendo a criação do mundo a partir da sua forma, pela causa primeira. O more geometrico, seja de São Tomás, seja da Filosofia Concreta do Mário Ferreira dos Santos, mostra um objeto fixo desde o começo, mas que se perfaz ao longo dos artigos, isto é, ao longo do tempo. Quanto mais lemos o livro, mais conhecemos sobre a causa primeira, não como quem ordena suas características como num diálogo platônico, de cima para baixo e de baixo para cima, mas como quem imita o percurso do tempo, isto é, de trás para frente e da frente para trás: do efeito para a causa e da causa para o efeito. Forma e conteúdo conjugadas para o mesmo objetivo. Tudo regido por uma lógica interna imbricada no Ser. Soa Hegel para mim.
Assim, podemos postular essas duas visões: a atemporal e a temporal, a clássica e a hegeliana. Na verdade, Parmênides e Heráclito. A síntese das duas visões requer um pouco de imaginação. Vamos tentar.
Hegel contemplou apenas o Espírito do homem como o centro da História. Mas quem determinou que o ser humano é o único que tem Espírito? Em tratado da inteligência eu chamo de "espírito da coisa" o centro de cada objeto, isto é, a cola que unifica as partes e lhes permite um sentido. Eu acho que Hegel está certo em falar do desejo do Espírito de perfazer-se, e o Espírito do homem é um desses, mas não o único.
Perfazer-se aqui significa atingir o nível de Conhecimento Total, ou seja, seria uma Química perfeita, uma Física perfeita, uma Poética perfeita, uma pessoa perfeita. A perfeição da pessoa, como dos demais objetos, implicaria na posse de todas as memórias de modo ordenado e inteligível. Já recebeu o nome, como no depoimento cristão EQM de Glória Polo, de "Livro da Vida", isto é, uma vida humana enxergada do ponto de vista da onisciência. Hegel considera apenas o espírito do homem ao falar que sua característica central é a liberdade; na verdade, o que marca o espírito das coisas é o desejo de perfazer-se, de preencher-se, de, em outras palavras, ser o máximo que puder ser. Pode-se dizer que mesmo, talvez sobretudo, as criações humanas, como as artes e as ciências literalmente fazem uso do homem para chegar a tal ponto. Quem veja o depoimento de Carl Sagan ou Neil deGrasse Tyson, ou a versão romanceada em Contato, quem ouça o depoimento de um jovem que ouviu a primeira vez um repentista e sentiu uma paixão que não sabia se era pelo repentista ou pelo ato do repente, pode ter uma ideia mais clara do processo de encarnamento de uma ideia na busca por perfazer-se. O encanto gerado ora pelas pessoas, ora pelos conhecimentos que representam, o mimetismo humano, revive continuamente o processo das técnicas de existirem e expandirem-se.
Não me parece que a história de uma habilidade ou de um espírito humano seja como dizia Hegel, a da passagem de um conhecimento para outro, após a morte daquele, como num casamento cristão que o esposo enviúva da esposa e fica a procura da próxima que a lembre, mas que seja adaptada às novas circunstâncias. Não, trata-se de possuir em si a simultaneidade das formas, cada qual encaixada no seu respectivo lugar: algo que mescla o donjuanismo e a poligamia como no casamento islâmico: desejo e responsabilidade. Como nos diálogos platônicos, em que cada parte é vista em consonância com o todo de onde deriva formalmente.
No tratado de estética esse princípio será melhor ilustrado. Mas, afinal, qual das vidas seria a mais perfeita e feliz: aquela que atinge o ápice da inteligência ou aquela que, além de atingir tal ápice, o faz através de uma visão integral e com sentido da sua própria existência? Na primeira, é possível tomar posse das técnicas da inteligência mesmo com o coração sujo; para a segunda, é preciso purificar o coração e enxergar, na ordem da própria vida, um chamado que sempre esteve presente e que se perfez, como a semente que germina e dá frutos.
Também qual dos dois chamaríamos de melhor poeta: o que domina apenas o estado da arte do presente ou o que sabe, junto ao presente, o máximo possível de técnicas e quando aplicá-las? É pouco provável que ele domine toda a poesia, mas ter em potência a possibilidade da poesia como objeto abrangente permite que o poeta adquira dele aquela parte que lhe interessa, sem perder de vista o conjunto. A poesia é não apenas o estado dos sucessivos presentes, mas se damos a ela o mesmo nome, é porque cada momento sucessivo pode potencialmente se tornar parte de uma só técnica, que pode apenas ser aperfeiçoada nos detalhes, mas já está dada toda desde o princípio e eternamente. Porque, como ensina Platão, uma consciência é capaz de abarcar a multiplicidade e perceber nela uma ordem implícita. Daí, assim como a beleza da mulher, do homem, do cachorro e de uma equação geram um objeto cada vez mais abstrato que chamaremos de Belo, também as várias poesias são aplicações distintas, mas que podem ser reunidas sob o nome de poesia. A poesia japonesa, como o haiku, e a poesia ocidental, como o soneto, não são a mesma coisa, apesar de usarmos o mesmo nome; mas elas podem ser reunidas num só objeto, e, enquanto meio expressivo, o poeta define qual recurso é melhor em cada caso. Do mesmo modo, a história da poesia ocidental não é equivalente à imagem de uma pessoa que nasce, cresce, se reproduz, decresce e morre; como falar que a poesia de Homero é menos madura do que a poesia moderna? E seria estranho imaginar ciclos de vida, morte e renascimento: o que há é uma só técnica, poesia, que, em cada época, recebe de ênfase alguns de seus aspectos e não outros. A técnica em si mesma é todos os espaços preenchidos e não preenchidos, coexistindo simultaneamente, quer nós possamos defini-lo ou não (como aliás, as ideias mais altas). Assim, a poesia moderna legou um conjunto de expressões novas para falar e compreender os estados, em geral, de revolta humana, ao mesmo tempo em que o soneto gerou meios de exprimir ideias mais íntimas e gerais, o cordel, a esperança do homem simples, o haiku, uma visão da unidade e da transitoriedade da existência etc.. Chamo isso de espírito das formas, isto é, cada forma tem um espírito e todas elas se encaixam como partes componentes do espírito da coisa de que fazem parte, qual seja, a poesia. Quebra-se, assim, o cronocentrismo, revivendo o passado, o presente e o futuro, na criatividade das potências existentes do objeto, conjugados por igual num só ato.
Essa ideia, apesar de ser expressa em forma geral aqui, não é algo novo. Os poetas continuaram a fazer epopeias, apesar de não estarmos mais no tempo delas, imitaram o soneto por cerca de 8 séculos, a terza rima, o cordel, e a forma moderna só não continua vigente porque o século XX viu as Guerras Mundiais após o começo do multiculturalismo, e o insight presente em tudo isso, seja na imagem de um governo global, seja na imagem da Ordem do filósofo Eric Vovegelin, foi a ideia de um todo capaz de abarcar todas as formas desde um ponto de cima capas de abarcá-las cada qual em seu espaço particular. É o que vemos na "Invenção de Orfeu" de Jorge de Lima, como na obra toda de Bruno Tolentino, e na filosofia do Mário Ferreira dos Santos. E na política globalista. Para o bem ou para o mal, é a nossa época.
Ademais, essa ideia não é do presente, ela é de qualquer tempo, e Platão já a fazia. Mas estamos no momento mais propício dela ser exposta assim. Hegel e a escola que dele deriva não estavam errados: a época tem uma tendência a uma forma, e vice-versa, a forma tem uma tendência a uma época. Como o encarnamento de uma habilidade, as formas se encarnam e pedem para o prosseguimento da sua história. Mas o prosseguimento da sua história é um pedido inferior, porque o desejo delas não é apenas sobreviver e evoluir, mas viver em pleno estado de posse.
Como resultado da macumba hegeliana, temos um mundo que está em plena verve de perfazer-se. O impulso sempre existiu, mas no passado o conhecimento estava mais tranquilo em repousar em si conforme os seus limites. Hoje, a regra é "quebrar os limites", é ir até "o máximo do seu potencial". Seja de baixo para cima, pelo surgimento de novos gêneros e sexualidades, novas palavras e línguas, novas ciências, novas obras de quaisquer temas, novas invenções e produções etc., seja de cima para baixo, pela tentativa de compor novas sínteses totalizantes, como a do Mário Ferreira dos Santos, encaixando-as ao Ser, e, em menor escala, a dos filósofos de cada ciência, como Wolfgang Smith na Física. Estamos em pleno desespero cético de, como os poliglotas mencionados em 4.3.1, conhecer de tudo, abarcar tudo, como o super-homem de Nietzsche ou o sentimento de absurdo da vida e obra de Camus, nascidas da perda do senso de unidade e seu desmembramento em inumeráveis partes. Estamos na época da produção em massa, do consumo em massa; dos excessos, como diria Byung Chul-Han, que são, na verdade, símbolos do desejo de abarcar a totalidade pela perda do geral. A nossa época se torna, ao mesmo tempo, a época da liberdade da Ordem, e da restrição de liberdade para evitar o Caos; do espírito das formas com o máximo de potência, e da concretização deste na vida política, a saber, da possível advinda de um totalitarismo. Ao contrário da simplificação do Byung Chul-Han, a resposta da época de liberdade é a coação, e ambas não são antagônicas, mas sim duas faces da mesma moeda, já perfeitamente descritas por Láo Tsé há mais de 2 milênios. Mas um problema não vem sem uma solução, e uma solução não vem sem um problema.
A ideia imbricada na dialética da eternidade, na ideia de Ser onde nada é mentira absoluta, é basicamente a de que todo o movimento da vida é parte do mesmo fluxo que permite a ascensão da inteligência. Isso será melhor colocado no tratado de religião. Aqui, basta dizer que trata-se do uso de toda a existência concreta como parte do processo de ascender até o Absoluto que as gerou. Diferentemente do perenialismo, ou do mito gnóstico, que separam o que é Bom do que é Mal, e o Mal é, em suma, o concreto, aqui todo o concreto é uma oportunidade sensível a partir da qual, pelo conhecimento e coração, abarcar graus de generalidade cada vez maiores até redescobrir o Ser, que já estava presente desde o começo na própria concretude. E, redescobrindo-o, repercebê-lo em tudo o mais, de modo a conseguir ver ordem e sentido nas coisas. Como Agostinho ou São Francisco, que conversava com as coisas e as via como símbolos de Deus, também aqui todo o concreto, mesmo o Mal e o erro, se tornam vias de chegar até o Acerto. Trata-se, como diria Lavelle, de uma "confiança no pensamento e na vida", sem a qual esse percurso se torna impossível, o coração não o permitiria. A dialética da eternidade é um convite a perceber, no imutável e no mutável, a Presença que as chama a ser continuamente. Como ilustrado pelos momentos de lampejos da inteligência no tempo no tratado da inteligência, é uma mesma Ideia Eterna que se revela no tempo de formas diferentes e nas várias criaturas no esforço de abranger o máximo possível de seres para ascenderem até si.
Para atingir a dialética da eternidade é preciso entender de antemão que nenhum objeto será perfeito. Não se atingirá nunca a versão em Conhecimento Total da Poesia, nem de objeto nenhum. Para ilustrar, tomemos a vida pessoal. É evidente que é impossível lembrar de toda a sua vida já vivida com tal clareza capaz de considerá-la simultaneamente e como um conjunto ordenado. Mesmo que nossa memória esteja presente conosco todo o tempo, ela não consegue considerar tudo, e, mesmo nos eventos relevantes, pode haver brechas na nossa lembrança. Isso para não falar nos erros de reconstrução da memória. Se nem da vida pessoal já vivida podemos ter esse vislumbre perfeito, menos ainda da que ainda falta viver. E, se nem nesse objeto, que é nós mesmos, podemos ter essa posse plena, menos ainda dos demais objetos, e, deles, absolutamente menos da Providência. Para um dito filósofo, fazer isso é mais do que arrogância, é orgulho luciferiano a tentativa de revelá-la concretamente. É colocar-se na posição do próprio Ser encarnado, renegando a de mero amigo (filo-sófos) e admirador. Não podemos colocar em palavras, mas podemos admirar, porque está imbricado na natureza a capacidade de captar generalidades. Poder-se-ia dizer, de louvar a Deus. Assim, é possível ter o vislumbre orientador para o sentido da vida e demais objetos, e isto será tema do tratado de religião. A rigor, a dialética é a posse de um coração conforme os conhecimentos disponíveis ao seu alcance - e a aposta que isso tenderá às ideias gerais e, com elas, ao Bem.
Para ter uma melhor posse da dialética da eternidade é preciso algumas técnicas. De todas, a principal é a compreensão do coração. Boa parte delas já está descrito no tratado da inteligência, mas há uma que é particular deste tratado, e será tema do tópico seguinte.
6- Pensamento comum e pensamento conscientemente categorizado
6- Pensamento comum e pensamento conscientemente categorizado
A vida é uma sucessão de sensações que se estocam na nossa memória, filtrados conforme emoção e interesse, que são constantemente rememoradas e novas conexões entre elas, estabelecidas. À imitação desse fluxo de informação, também a vida comum é essa sucessão interminável: todos os dias têm que se alimentar com uma comida que não é a mesma que a do dia anterior, e limpar a casa da nova poeira, e lavar a louça com uma nova sujeira, e limpar o corpo também da nova sujeira, e fazer as funções do dia no trabalho para manter a empresa; e tem as notícias do dia, e tem os stories do dia, e tem os tiktoks do dia, e cada dia, a cada dia, as informações se renovam, e preenchem mais uma vez as necessidades que tentamos preencher no dia anterior, dia após dia. Nada é vão: essa sucessão se acumula na memória e gera, no mínimo, tédio da percepção dessa repetição (vide tópico 4.3.1). Esse tédio é um sinal de padrões percebidos. A vida não é mais só sucessões, mas padrões.
Ninguém vai exigir que se faça esse processo de análise, e, na verdade, é até prejudicial economicamente, porque, em alguma medida, torna algumas coisas que parecem bem interessantes um tanto menos interessantes. Assim, por exemplo, não há num canal de TV um programa específico para ensinar a decifrar como o canal se estrutura, quais as escolhas e tendências, como os programas se relacionam uns com os outros, quais expectativas existem em relação ao público, para que servem e no que agregam para a formação de um sujeito na sociedade específica em que vivemos, e mesmo na cidade particular em que se está assistindo. E, ainda assim, sentimos que Rede Record tem tendência conservadora, a Rede Globo tem tendência progressista, e a SBT é um canal focado na nostalgia brasileira. Esses atributos que fazemos aos canais seriam suficientes para revelar a própria unidade presente neles, a partir de onde avaliar os programas e novamente recompor os nomes, como na técnica platônica, mas não é o nosso caso aqui. Do mesmo modo que com um canal de TV, também não há o mesmo recurso analítico e "crítico" para uma grade de um curso técnico nem universitário, nem, o que é mais justo em função da idade do público-alvo, para a escola, nem para os jornais, menos ainda para a internet. Também jamais se fará essa avaliação para a estruturação de uma cidade: nem a arquitetura, nem o urbanismo, nem as tendências de costumes etc., ainda que haja tudo isso e seja avaliável. Se nada disso há, então o que há, afinal?
Praticamente nada. É curioso, porque construímos grades para permitir ordem, mas não construímos a capacidade de avaliação da própria ordem construída. Quando se fala em "crítica" hoje, não é mais no sentido antigo de uma avaliação criteriosa da unidade e das partes, e como ambas se relacionam, e se se relacionam harmonicamente e com bom uso - isto é, forma e finalidade. Crítica hoje é despejar ideias e insatisfações: é mais uma amostra do coração do falante do que uma avaliação formal do objeto criticado. Assim, mesmo as estruturas e padrões que compõem as coisas, graças à habilidade humana - as arquiteturas, as grades, o planejamento urbano, a relação entre as profissões e o povo, a relação da mídia com o povo, da internet, enfim, uma análise formal abrangente - se torna tão ininteligível quanto a poeira da casa, a louça suja, o vento que passa. O mundo, que poderia se tornar um grande livro sobre quem somos, de onde viemos e para onde vamos, não só no sentido metafísico, mas no sentido propriamente sociológico/cultural e artístico, desaparece. Quanto menos pessoas há que consigam fazer essa avaliação, menos a sociedade tem meios de tomar consciência de si própria, e a vida individual, a social e a discussão pública que a representa, e a política que disso se forma, tornam-se injustos, mesmo loucos. Vivemos isso.
Essa imagem, esse modo de vida que vive cada dia como se viesse do nada e fosse para o nada, é algo que está abaixo da vida em uma cultura oral. A cultura oral, pelo menos, fixa o dia dentro de uma chave simbólica dada pela mitologia particular da tribo. Do mesmo modo, o cristão é convidado - mas nem sempre o faz - a enxergar o dia como parte de uma mensagem que Deus constrói para si. Mas a vida comum hoje não está nem nos quadros orais, onde prevalece a vida em imagens simbólicas e na força da memória, nem nos quadros do povo do livro, onde à memória se acrescenta a tecnologia da escrita, que, no dizer de Vilém Flusser, faz nascer o pensamento analítico. Não, nem na memória nem em sua extensão, nem na imagem categorizada nem na escrita categorizante. Vivemos em um mundo de assombrações, onde a confusão é tanta que já nem mesmo é percebida, e que só não se desfaz porque os espíritos dos "sistemas legados" exigem sua manutenção, mesmo que capengue. Assim, os quadros de ordem da universidade, dos cursos técnicos, da família, da vizinhança, das relações sociais etc., sugam os corpos dos homens para que sejam preenchidos, o que não quer dizer que possamos tomar posse desses quadros e realmente fazê-los valer a existência, como também a nossa.
Essa circunstância, que, como ilustrei acima, vivemos de modo generalizado, é precisamente o mundo pré-socrático. Pior do que ele, porque ancorado na possibilidade tanto de evitar a volta a essa circunstância, como de de curá-la, o que simplesmente não ocorreu. Acredito que, no nosso país, que esteve precisamente no início do auge da cultura no século em que ela recebeu uma avalanche cada vez maior de informações desordenadas, acabamos por sofrer mais do que em outros lugares, com cultura erudita mais bem estabelecida. A diferença entre uma vida pré-categorial e a posse consciente da capacidade de categorizar é entre uma vida que se dilui dia após dia e a habilidade de enxergar nela sentido e significado.
Para ilustrar, é verdade que não estamos de todo destituídos da capacidade de perceber as coisas em sua profundidade e relação temporal. Ainda hoje nos interiores o modo de comunicação se estabelece na linha "Fulano, filho de Beltrana, casado com Cicrano, filho de Zé Deltano". Ou, no dizer de João Cabral: Severino filho de Maria do finado Zacarias lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Quando o sujeito é de uma geração posterior, quem fala provavelmente nem conhece o nome do mais jovem, por não ter tido experiência suficiente com ele (salvo exceções), então o omite, mantendo apenas a alcunha familiar que o demarca. Em suma, o nome se torna sinônimo da relação genealógica, que, por sua vez, está atada em filigrana com a experiência particular do sujeito. Nos nomes como no mais, esse modo de ver a vida, para frente ou para trás, isto é, para as gerações mais novas ou as mais antigas, gera uma densidade que é um dos motivos principais de falar-se que na vida urbana vive-se atomisticamente. Essa visão que rompe com o cronocentrismo, com a ênfase no momento, está também na vivência da natureza como igualmente presente e diacrônica. Dentre essas pessoas, algumas há que se enraízam ainda mais, e buscam uma visão mais ampla, seja da genealogia da cidade, seja do seu histórico ou da sua vida natural ou espiritual. Para além dos moradores, que já tem um grau de consciência mais abrangente do que a de um cidadão urbano comum, apesar dos conhecimentos menos abrangentes, essas pessoas com conhecimento extra se tornam as sábias da cidade, porque sua busca está consiste não num estudo solto, mas numa busca por enxergar ainda melhor a tessitura e a ordem local.
[RETOMADA]
[RETOMADA]
Para aquele que sentisse necessidade interior de cumprir com essa tarefa de expansão do autoconhecimento que eleva a um conhecimento do meio e sua história, meu professor Olavo de Carvalho os denominaria, segundo entendi, de pessoas da "8ª camada da personalidade", das 12 disponíveis. Como se vê no Tratado de Cultura, há uma maior probabilidade de que essas pessoas deixem um legado, em papel ou oral, da ordem do local, de experiências que remontam a uma profundidade sobre a cidade que, quando absorvido, insere o ouvinte ou leitor em um quadro de visão mais amplo e, por sua vez, abre nele a possibilidade de também se elevar. É na ausência dessas pessoas que tudo o mais perde suas raízes e se tornam confusas, aparências que parecem surgir do nada e evaporar de volta ao nada. Acima delas estão os que se devotam ativamente a uma habilidade, de modo a fundir as duas inclinações (camada 9), de onde se segue, por uma via pessoal, a compreensão do Bem e do Mal (camada 10), uma visão da sua posição perante a História (camada 11) e perante as possibilidades humanas Eternas (camada 12). O que chamo de "Vida Bela" no tratado de estética é justamente aquela em que consegue ordenar-se a si mesma a partir de um princípio, que, por sua vez, será uma amostra da ordem que reina sobre a confusão. É o que é esperado ocorrer em quem está na camada 8 em diante, mas, espera-se, possa ser buscado mesmo por quem, desperto dessa possibilidade, esteja em camadas anteriores.
Todas as coisas se ordenam no ser, e, se na vida estão juntas e misturadas - o que pode gerar uma visão trágica, Caliyugística -, é porque é dever do homem tomar posse da razão, e, quanto menos pessoas aceitaram esse desafio, que requer força contra as adversidades e sinceridade extrema, mais o que podia ser a antevisão de uma ordem se torna, efetivamente, caos, pela ausência de inteligibilidade, ainda que esta permaneça sempre uma possibilidade genuína. Os diálogos de Platão são talvez o melhor trabalho já feito para exercitar a capacidade de perceber essa ordem implícita tanto na natureza como na ação humana. Mas é preciso confiança para seguir no encalço da ordem. Aos que confiem, ela de fato se revela. E, daí, gradativamente surge a capacidade de pensamento ordenado.
7- As divisões fundamentais da Filosofia
7- As divisões fundamentais da Filosofia
É possível, ao que parece, dividir a Filosofia em duas grandes áreas: o estudo do Nous e o estudo do Ser, ou seja, o estudo dos meios humanos de gerar inteligibilidade, e o estudo das condições de inteligibilidade da Natureza. Evidentemente, não se trata apenas do estudo destas coisas em si mesmas, mas também do Nous e do Ser. Se é assim, na Filosofia cabem todos os estudos, mas, certamente, ela não é a ferramenta mais eficaz para o estudo. Como diz Leibniz no seu tratado de Metafísica, é preciso estudar as coisas conforme suas causas materiais, não apenas concluir que são estudáveis. Para isso surgem as investigações naturais e humanistas, que se desenrolam nas diversas ciências. Cada ciência, por sua vez, tem os seus requerimentos específicos da inteligência, como também sua parcela do Ser. É, porém, na Filosofia que esses conhecimentos se montam como um quebra-cabeças cuja imagem revela novamente a unidade do saber e, com ele, da harmonia social. O mal, diria Platão, é a confusão dos conhecimentos, ou a burrice: uma vez que as coisas sejam colocadas no seu devido peso, cada um de nós quer no mínimo o melhor para si (ainda que o que se considere momentaneamente melhor seja um dano a si próprio), então evidentemente que o caminho para um bem maior seria mais visível. Ao contrário, a geração de novos conhecimentos em excesso, sem o esforço filosófico, aumenta a confusão, aumenta a desarmonia social, e o Brasil é especialista em mostrar os efeitos disso; por outro lado, há tanto tempo estamos acostumados com a confusão que, pelo jeitinho brasileiro, construímos uma civilização que se vira na desordem. Se, porém, divido a filosofia em duas áreas, é porque uma precisa da outra, e ambas se complementam. Já dizia meu professor Olavo: filosofia é "a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa".
De uma contemplação da inteligência humana, que tentei abordar, ao menos o que me coube saber até o momento, em tratado da inteligência, é possível decodificar o nascimento de um conjunto de circunstâncias na filosofia, que chamarei de objetos da inteligência, a partir de onde virá, em especial, o estudo do que chamarei de sentimentalidades filosóficas. O estudo do Ser, por sua vez, foi o que deu origem ao tratado até o presente ponto, mas, daqui por diante, comentarei sobre as possibilidades derivadas e um possível reencaixe no Ser.
7.1- Nous: Objetos da inteligência
7.1- Nous: Objetos da inteligência
O tratado da inteligência é uma tentativa de descrever as possibilidades da razão humana, não apenas com intenção descritiva, mas também prescritiva, isto é, assumo que, quanto mais você tome posse dessas habilidades, mais as compreende, e mais toma posse da sua inteligência. Inteligência aqui não diz respeito, por exemplo, aos "9 tipos de inteligência" de Gardner, ou tipologias similares, mas sim às habilidades perceptivas que precisam existir em quaisquer aplicações da inteligência, conforme gosto e tendências pessoais de cada um.
Abaixo, deixarei alguns dos objetos que consegui captar até o momento nas investigações que tive.
7.1.1- Solipsismo
A palavra solipsismo parece mais com uma sentimentalidade filosófica do que propriamente um objeto da inteligência. É que acaba por ser um sentimento, mas, na realidade, está fincado em uma realidade genuína da inteligência.
Esse objeto de que o solipsismo é o seu exagero histriônico é o ser encontrado na própria inteligência. Louis Lavelle, na sua obra, mostra a descoberta do ser a partir de uma experiência profundamente individual: cada objeto externo que se apresenta para a nossa consciência nos convoca, pela atenção ativa, a reconhecer aí uma tripla relação: o objeto ao mesmo tempo nos revela algo sobre si, mas, na mesma experiência, o que captamos do objeto diz respeito aos nossos conhecimentos prévios, e, afinal, pela conjugação de ambos conseguimos compreender a nossa relação com o objeto. A percepção dessa relação em si mesma, onipresente, ainda que não seja tomada como matéria de atenção, é precisamente o reconhecimento do ser no sujeito, do ser no objeto, e da relação mútua entre ambos os objetos no ser. Como veremos em Nietzsche, todo conhecimento externo depende do nosso esforço por extrair dele significado, que é uma experiência essencialmente individual, um debruçar do eu perante o mundo que é sua memória.
Isto significa dizer que o reconhecimento do ser requer um esforço plenamente individual. Tomado esse lado da experiência em si mesma, separada das outras duas realidades, e, acrescida também de uma desconfiança para com a mitologia local, surge, então, a paranoia solipsista. O que ela encerra de verdade é que o ser nos revela todo por inteiro a cada momento, pois cada coisa está conectada a todas as outras em simultâneo, e em cada consciência a cada momento o ser se apresenta todo inteiro, com todas as suas potencialidades, em todo lugar, e os objetos e sujeitos são aspectos concretizados desse potencial ilimitado. Esquecido de que cada coisa tem em si o ser inteiro, e não apenas o sujeito cognoscente, surge o solipsismo.
Solipsista é aquele que enuncia: Après moi, le delúge, na vã esperança de que a História se encerre com a sua morte, elevando a sua própria autoridade à de um deus decaído na pobre esfera terrestre. Conforme o grau de inocência do sujeito, esse sentimento pode variar. E, de novo, é fato de que, uma vez morto, para este eu que estava presente na vida, toda a história humana, como toda a história do universo, se passariam em menos do que um só instante, pois na morte não há tempo para ser contado, então há todo o tempo do mundo. Este raciocínio, porém, é melhor desenvolvido no tratado de religião.
7.1.2- Aprioridade
Chamarei de aprioridade, isto é, a qualidade de captação do a priori. Para que o ser humano seja capaz de falar a respeito de objetos abstratos, é preciso que haja a possibilidade abstrativa de considerá-los enquanto entidades abstratas. É disso que se trata a aprioridade.
Conceber categorias abstratas não é nada mais do que considerar a existência a partir de categorias intermediárias mais próximas do ser. Assim, por exemplo, se Kant define o tempo e o espaço como as condições transcendentais onde o mais é fenômeno e, nos fenômenos, substâncias, ele está considerando que o ser se divide em duas categorias, a saber, tempo e espaço, mas apenas elas duas não seria suficiente para gerar nada além de si mesmas, então precisamos ter um terceiro elemento, que chamemos de ser existente. De ser existente todas as demais coisas se originam.
No mais, os objetos apriorísticos, ou abstratos, como as proposições euclidianas, os números matemáticos, seja como quantidade ou como qualidade, as categorias de classificação das demais coisas, tudo isto deriva dessa terceira categoria, enquanto ser existente. Tempo e espaço passam a se restringir apenas ao território onde as demais coisas se manifestarão. Com relação às ciências modernas, que falam de um tempo e espaço relativísticos, se assim forem, significa que essas categorias não são apenas firmes, mas geram novas subcategorias em distintas, cada qual abrangendo um conjunto de fenômenos, mas, ainda assim, todos submetidos ao mesmo padrão de medida, que é dado pela "espécie" a que fazem parte, ou seja, tempo e espaço, que poderíamos chamar de absolutos.
7.1.3- Vontade
A partir de Kant, como Olavo expressa em pouquíssimos parágrafos no debate com o professor Duguin, cada filósofo posterior passou a querer encontrar o apriori condicionante da razão humana. Ainda hoje se está nessa empreitada, como a linguística cognitiva demonstra. O corpo físico, a vontade de poder, o inconsciente coletivo, o inconsciente, a vontade de potência, a vontade, a História etc..
Diz-se que as três propriedades essenciais da consciência é sentimento, vontade e inteligência, que correspondem à estética, à ética e às ciências, coroadas pela filosofia primeira. Schopenhauer escolheu uma das três categorias para colocá-la acima das demais em prioridade. E o conhecimento passou a depender da minha potência de ação, saindo, cada vez mais, de uma contemplação para uma praxis. Da práxis para o pragmatismo, e então para a ênfase em debates sem fim cuja única função é convencer o público mais do que a chegar a uma verdade comum: a razão, que unifica os contrários, foi substituída por uma guerra de vontades, apenas transferida do terreno das ideias solitárias para o terreno das discussões públicas, cujos efeitos se veem nas decisões públicas.
Quando o empirismo venceu o racionalismo, quando Leibniz desistiu de publicar os seus ensaios sobre o entendimento humano, parece que perdeu-se cada vez mais a capacidade de discernir a causalidade na vida prática. Porque, por mais que se fale que os conhecimentos só veem dos sentidos, é inevitável que seja possível, pela cultura, pelas ciências, prever aquilo que ainda não é sensível. Pior ainda: a ciência cognitiva hoje permite facilmente perceber que, de fato, o ser humano tem "ideias inatas". Se não os tivesse, mas a razão em potência já existe: a equação que Leibniz montou pode ser traduzida simplesmente da seguinte maneira: o Absoluto é uma potência embutida no natural, e esse elo de ligação entre mundo concreto e mundo abstrato está na imaginação, treinada pela cultura e pelo desenvolvimento da razão.
Não foi esse o nosso destino histórico. Da vitória do empirismo, venceu o mundo natural; era questão de tempo até que a sensibilidade e a vontade se colocassem acima da possibilidade de harmonia. De Schopenhauer em diante, a filosofia ficou cada vez mais tímida na sua capacidade de conhecer, e, coisa estranha, as ciências mantiveram coletando conhecimentos, ainda que cada vez mais pessoas dissessem que a verdade é relativa e que não é possível chegar a nenhuma verdade maior. Daí por diante se erigiu o império da vontade e de sensibilidade: surgem as sentimentalidades filosóficas.
7.1.3.1- Sentimentalidades filosóficas
Como dito, pelo rompimento com a confiança na razão, isto é, o progressivo abandono do treino com Platão, ficamos, de um lado, com uma visão mais materialista do estilo aristotélico de investigação - diga-se de passagem, derivado das técnicas de Platão -, de outro, com a sensação de impotência da razão, que só pode, então, falar sobre os sentimentos que se passam no interior do homem, pois tudo o mais seria incognoscível. Da primeira vertente derivaram-se as ciências modernas, que, no mais, acabam por serem enquadradas, quer conscientes disso ou não, no projeto hegeliano da Razão no Estado, mas uma razão fragmentada, que tenta uma planificação econômica e precisa voltar ao caos pelo fracasso; da segunda vertente surgem os movimentos de libertação das sentimentalidades individuais mais concretas: sexualidade, gênero, e, em pé de igualdade, as demais vertentes corporais conforme raça ou etnia.
Não é o caso de tratarmos neste manual as minúcias das sentimentalidades mais comuns (mas posso vir a dedicar um volume para elas, chamado "Mapa das emoções"), mas sim das filosóficas. E estas têm seu marco de começo, até onde sei, com Nietzsche.
1. Super-homem [Nietzsche]
Nietzsche quis propor o nascimento de novos homens, criadores, capazes de inventar novos Bem e Mal para renovar a face da Terra. De Nietzsche surgiram dois tipos de pessoas: as que entenderam que ainda precisariam passar pela fase do camelo, e as que já se acharam na fase do leão. Em suma, os humildes recolheram-se na humildade, os arrogantes passaram, daí por diante, a se acharem a régua do bem e do mal, mas, não tendo eles próprios nenhuma carga para afirmar algo criador, passaram a afirmar aquilo que seu grupo de referência já afirma, porém agora com uma autoestima inflada como os peitos dos soldados que obedeceram as novas ideologias totalitárias do século XX.
Mário Ferreira dos Santos e Louis Lavelle são exemplos do primeiro. Com Nietzsche aprenderam a buscar a coragem de afirmar, mas não sem antes passar por um longo processo de aprendizado. O que existe de verdade na postura nietzscheana é um simples fato cognitivo: só é possível conhecer genuinamente pela conexão entre o conhecimento externo e a nossa inferência sobre seus significados potenciais; entre o camelo que busca o conhecimento e o leão que tenta torná-lo seu com o máximo possível de associações, para expandi-lo, se possível, até além do que ele próprio é capaz de oferecer. É daí que, pela influência de Nietzsche, ambos os filósofos mencionados chegam a visões "totalizantes", mas não "totalitárias": o Conhecimento é um todo unificado e inteligível, e, portanto, nele tudo está em ordem, e essa ordem pode ser contemplada para além de como a vida faça parecer a um olhar menos apurado. É nesse sentido que Mário, no Dialética Concreta, sonha com novos super-homens que, como ele, expandam a potência de ordem pela sabedoria, e, assim, ajudem a sociedade a ser cada vez mais bondosa.
A outra via, mais comum, é o rompimento com a necessidade de conhecer, e uma ênfase no poder imediato. Nietzsche rompe com a noção de ordenação potencial que Platão ensina para mostrar que as noções de Bem e Mal derivam de um princípio. Este, por sua vez, passou a ser visto como arbitrário, não como imagem de um Bem e Mal fixos, absolutos, de onde eles eram apenas um aspecto. Da contemplação na possibilidade do absoluto, caiu-se à arbitrariedade cética do multiculturalismo, coisa que o próprio Nietzsche deve ter sofrido, enquanto filólogo do século XX, quando o ocidente foi invadido de vez pelo orientalismo: o choque de culturas é um grande gerador de ceticismo (vide em tratado da inteligência). Se o Bem e o Mal eram arbitrários, cada pessoa e grupo poderia muito bem achar a justificativa ideal para impor o seu: mais ainda se, com Hegel e Marx, encarnassem um novo deus, a Razão, uma etapa para o Bem supremo que viria no futuro.
Choques monumentais da humanidade recente à parte, na população comum, seja por Nietzsche, seja pela descrença geral na humanidade gerada pelo sofrimento das guerras, surgiram as novas sentimentalidades. Nietzsche é popularmente associado ao nihilismo, alguns chegam a achar que o termo é derivado do seu nome. Curiosamente, Nietzsche é afirmador da vida, da Terra pela negação do Céu, e quem o leu efetivamente sente-se como alguém exatamente contrário ao nihilismo. Não é isso, porém, o que acontece na prática. Mas a quebra da confiança na possibilidade de ordem, criada por Nietzsche, sobretudo no começo de Além do Bem e do Mal, e o aumento do orgulho leonino impedem o sujeito de ver o abismo vazio a que sua inteligência ficou reduzida.
2.Nihilismo
O nihilismo nutre sua força na perda da confiança na existência de ordem. Com a proposta de Nietzsche de identificar o Bem e Mal a partir de um princípio arbitrário, além do esmagamento na inteligência mencionado no parágrafo anterior, o sujeito que o lê vê a si e a seu entorno reduzido a fragmentos inconexos, e cujo único meio de juntá-los é pela vontade pessoal cada vez mais totalitária. É dessa sentimentalidade, que não é invenção de Nietzsche, mas do qual ele é representante para a posteridade, que vieram os personagens do subsolo de Dostoiévski: o homem do subsolo, Raskolnikov, Nastássia Filipovna, Verkhovenski pai e filho, Stavroguin, Ivan Karamazov. Em menor escala, as pessoas que se veem reduzidas a fragmentos acabam por se assemelhar a esses personagens, e a nutrir um profundo ressentimento pela vida, que pode explodir em uma ação genuinamente desesperada, mas que, geralmente, torna-se um azedume e uma constante intenção de destruir o Bem e Mal correntes pelos meios disponíveis, de modos sutis e aparentemente inofensivos (nunca o são), na esperança de que no encadeamento das ações surja um salto qualitativo que destrua o princípio vigente em nome de um novo princípio, seja lá qual for.
Trocando em miúdos, o nihilismo nada mais é do que a perda da confiança da inteligência, muitas vezes antecedida ou acompanhada por um genuíno desmonte na capacidade pessoal das técnicas da inteligência. É um sintoma grave que para ser resolvido, só com um retorno humilde ao esforço por readquirir a habilidade perdida, o que não é possível sem uma redenção interior e uma confiança na vida, como Rasklonikov ilustra.
Podemos dizer que, no sumiço da confiança da razão, seja pela ênfase na vontade, seja energizada pelo nihilismo, há duas tendências sentimentais em que as pessoas se dividem: existem os passivos e os ativos. Os passivos se contentam com as consequências da melancolia gerada pela falta de ordem, portanto de sentido nas coisas; os ativos tentam com todas as forças ou construir um sentido arbitrário e aleatório, ou exaltam ao máximo a sensibilidade pela experimentação das múltiplas possibilidades da vida, para tentar esgotar-lhe as possibilidades, já que, se não tem sentido, mas ao menos tem prazer.
Náusea [Sartre]
La nausée, o tédio francês perante a vida. É o tédio que move Dom Quixote, o tédio que move madame Bovary, o tédio que move personagens pop como Light Yagami, de Death Note, que, tendo inteligência mediana e presenciando algum caos e sofrimento (nunca demasiado), sentem a falta de sentido da vida. E daí é preciso projetar o sentido em algo, ou apenas viver nesse tédio diletante e impotente. É a nausea sartreana.
Na nossa língua foi o Drummond da Rosa do Povo que a expressou. "Vomitar esse tédio sobre a cidade". A poesia o preenche, mas seus esforços são vãos, porque o mundo continua cinza e preenchido de asfalto, e ele nada mais é do que o carregador de um elefante ignorado "num mundo enfastiado que já não crê em bicho e duvida das coisas". Mas é também Drummond que reconhece a impotência perante a razão do homem moderno. "Máquina do mundo" é o poema em que ele confessa essa postura: após furar a flor no asfalto na Rosa do Povo, aqui, em Claro Enigma, o sujeito poético narra em versos similares aos dantescos, com métrica igual, mas sem qualquer rima, o surgimento, na vida comum, da máquina do mundo. Isso significa não apenas perceber símbolos, como faz o poeta, mas perceber, nos símbolos, uma unidade e uma mensagem maior que eles parecem antever. É a mensagem que Dante constrói na sua Divina Comédia, e que é a chave mesma da inteligência humana. Mas o poeta de versos modernos olha para aquilo, percebe-se diante da porta, mas foge assustado - e a máquina do mundo desaparece, e o céu volta a ser cinza.
É precisamente essa impotência que está presente nas sentimentalidades nihilistas, mas a náusea é o supremo tédio de quem quer encontrar a ordem, mas não tem coragem. Então fica entediado, à espera, como Estragon e Vladimir à espera de Godot, na peça de Samuel Beckett.
Desafirmação [Cioran]
Para além da simples desconfiança na vida, existe um sentimento à parte. Ora, podemos distinguir dois tipos de grandes autores: os que descrevem a ordem e os que descrevem o que não é a ordem. Geralmente os que descrevem a ordem acabam por comentar também a não-ordem como recurso de apoio: é Dante, Dostoiévski, Olavo de Carvalho. Já os que descrevem a não-ordem em geral, como Drummond, ficaram apenas diante da porta, mas tiveram medo de atravessá-la, então sua trajetória é do negativo, ou seja, daquilo que na sociedade mais empaca as pessoas de chegarem à ordem: é Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Cioran.
Cioran merece este tópico à parte, porque representa muito bem o problema do Bem e do Mal de Nietzsche. Aqueles que afirmam que o Bem e Mal são arbitrários estão, conjuntamente, propondo um modelo de Bem e Mal, como o próprio Nietzsche, ou Foucault. Coloque-se Foucault lado a lado de Cioran, e vê-se aí a afirmação de uma nova proposta, porque tudo é ideológico, então é preciso afirmar, e, ao lado, a desafirmação com o intuito de restaurar a possibilidade da razão humana, presa no truque verbal feito pelos primeiros.
Mas, de novo, Cioran no fundo não afirma uma confiança na razão, apenas desafirma que o que temos é apenas ideológico, isto é, não diz respeito a descrição de fatos do mundo. A infância de Cioran é de alguém muito doente, com traumas adquiridos pelas noites de insônia e sonambulismo. Para quem passa por tais circunstâncias, como quem passa por grandes traumas, fica difícil a razão convencer os sentimentos de que o mundo é potencialmente bom e ordenado, e as coisas têm sentido, mesmo o sofrimento. É daí que surge a fórmula de Cioran, onde a saúde é "privação da doença". Se expandirmos a afirmação, a morte é que é a essência das coisas, e a vida sua privação. Como se verá no tratado de religião, na condição de ser vivo essa frase não pode ser realmente dita nunca, mas, ainda assim, expressa uma tendência da sentimentalidade humana. É a desafirmação, a inversão das afirmações, que, afinal, tem um valor positivo: neutralizar o princípio vigente de onde partiu a desafirmação para que a razão possa se desalienar e a inteligência possa novamente ser trabalhada. Assim também os autores que falam da não-ordem, na revelação dos monstros sociais, podem ser encaixados - e somente são válidos se encaixados - como o caminho de purificação necessário para atingir a ordem: é o caminho do inferno de Dante, atualizado a cada nova geração de bons escritores, para que se possa chegar gradualmente ao estudo (purgatório) e posse gradual da inteligência (paraíso).
Absurdo e Revolta [Camus]
Todas as sentimentalidades filosóficas acima diziam respeito às inclinações de desconfiança da razão passivas. Estas duas são as ativas: absurdo e revolta.
O absurdo é semelhante à náusea, mas náusea é um enjoo do mundo acompanhado de um tédio; o absurdo, por sua vez, é um choque. É em si mesmo energizante. As sentimentalidades anteriores se acharam em um labirinto onde a inteligência não consegue escapar, e apenas lamentaram como uma tragédia inevitável. Aqui, não: nada tem sentido - e essa é a constatação do absurdo. É preciso fazer alguma coisa - essa é a consequência.
Os personagens de Kafka, sobretudo Josef K. de O Processo, percebe que a vida é um labirinto sem sentido nenhum. A constatação disso é o choque. Uma vez constatada a (suposta) falta de sentido, busca-se desesperadamente preencher esse vazio.
A revolta que vem em seguida é o espasmo enérgico, vivido pelo próprio Camus, que direciona o sujeito a duas direções: ou ele afirma "A existência precede a essência", ou ele sonha abarcar a totalidade da experiência humana para suprir o vazio. Na primeira ele busca construir arbitrariamente a ordem; na segunda, absorver o caos. Há ainda uma terceira direção, mais sutil, com a qual fecharei a proposta das sentimentalidades.
Na primeira direção, o sujeito passa a negar a possibilidade de que haja algo de essencial em cada sujeito, o que é, em si mesmo, absurdo. Todo ser humano que nasce herda as condições comuns da espécie, possui um certo DNA que gera tendências de desenvolvimento corporais, nasce em certas condições socioeconômicas, que vão desde a posição de seus pais, até a relação destes com a comunidade em torno. O ser humano é um bicho e outra coisa; nesse sentido, a condição de bicho é tão descritível pela biologia quanto qualquer outro animal. A condição da razão, não: distinguimo-nos a tal ponto que entre duas pessoas pode haver a distância de um bêbado impotente no barzinho da esquina até Stálin, a quem milhões tinham que prestar obediência; de Hitler a São Francisco de Assis, de um aluno preguiçoso nas aulas de Física a Newton, Einstein ou Heisenberg. A vida cultural, apesar da mimetização de uma comunidade animal, é a entrada do homem nas potências da razão; neste sentido, as possibilidades apresentadas pela cultura são tão diversas que, de fato, na proporção em que a razão se sobreponha ao animal, é possível afirmar que "a existência precede a essência". No mais, não. Mas essa frase é usada sobretudo para justificar quaisquer vícios, manias ou desejos, porque ela gera a sensação, como o super-homem do Nietzsche, de libertação das condições de nascimento: é daí que se tenta reconstruir os conceitos de gênero e sexualidade, para dar nome às sentimentalidades mais simples e torná-las possibilidades culturais. Nanny People é uma travesti famosa no país: ela era apenas um gay, porque travesti ainda não era uma possibilidade cultural vigente; era, porém, um gay ainda insatisfeito, até descobrir a possibilidade de travesti, e tal posição preenchia sua sentimentalidade pessoal: não é apenas questão de gostar do mesmo sexo (Nanny People era homem), mas sim de transformar-se no sexo oposto senão na genética ou no corpo, ao menos nos hábitos. Qualquer que seja o motivo sentimental da transformação, não há como negar que a razão se sobrepôs à vida animal. Assim é a consequência da admiração da postura sartreana.
Na segunda direção, o foco não é a transformação, mas sim a experimentação. Mais ativo do que o anterior, e a postura do próprio Camus, o sujeito, nessa posição, deseja experimentar de tudo, conhecer de tudo, porque a vida é uma só e, se não tem sentido, mas o conhecimento pelos sentidos ou pela razão gera prazer. Como mostrado em 4.3.1, no exemplo de Benny Lewis e Jena Fadness, a tentativa de conter em si todo o caos da existência é obviamente impossível. Ele gera, isso sim, uma sequência absurda de determinações desconexas, e que transformam o sujeito num depositório de caos. É buscar intencionalmente aquilo que as mídias cada vez mais fazem conosco: preencher-nos de informações, a partir de um critério cada vez mais individualizado, mas, ainda assim, em completo caos, porque não importa ensinar a ordem, mas manter o usuário o máximo de tempo em mais do mesmo para gerar lucro. Enquanto houver a chama da juventude, há, ainda, o sonho que alimenta o percurso. Na medida em que surjam as limitações, o sujeito fica proporcionalmente preso não só pelo corpo, como também pelo espírito, preenchido de caos. Volta-se ao nihilismo, mas um nihilismo ainda mais forte.
Em busca de sentido
Curiosamente o século XX viu as guerras, gritou o absurdo, desejou renovar tudo pelas próprias mãos, mas, no meio daqueles que sofreram nessas mãos renovadoras, revelou-se um instinto ainda mais forte que habitava em cada um. Foi Victor Franklin no campo de concentração, Nicolae Steinhardt, Constantin Noica, Petre Tutea em prisões domiciliares, foi Louis Lavelle, participante de uma frente na primeira guerra mundial, que percebeu-se, por trás do existencialismo de onde derivava todas as sentimentalidades acima, um instinto por ordem e harmonia que habita não só o homem, como o mundo. É Lavelle quem percebe que a guerra tem uma marca essencial de revelar, nessa hora do aperto, a nossa posição real diante da vida: somos nada, e nada nos pertence, mas resta-nos apenas o apoio mútuo, e, fadados nessa condição, sentimos um apoio muito mais profundo do que qualquer aparência externa: é a descoberta da essência humana, onde habita em potência todos os seres.
A marca do existencialismo ao estilo lavelleiano, que aparece também nos demais autores citados, é precisamente a percepção da relação, no ser humano, da essência com a construção, da natureza com a cultura, e o desejo de absorver o máximo possível do conhecimento para refletir a ordem. A ordem: pelo esforço de criar um sentido, os elementos da vida se mostram ordenados, como quem tentasse juntar palavras aleatórias numa frase que elas permitissem formar. Quanto mais se ordena, mais as ações consecutivas terão um critério de ordem, e aí pode-se retroceder ao passado, captar mais elementos, e ajustar de novo a ordem passada. Fazendo assim sucessivamente, entre presente, futuro e passado, revela-se cada vez a ordem revelada e construída pelas mãos do artífice humano no bicho. Seja com a vida pessoal, ao que damos o nome de vocação, seja com a ordem do conhecimento e do tempo, ao que damos o nome de providência. Conscientes, obviamente, das nossas limitações implícitas do conhecer, nada impede, porém, uma antevisão. É a teodiceia de Leibniz, caçoada por Voltaire, ele próprio merecedor ainda mais de uma caçoação pela burrie.
A posição lebniziana significa uma aceitação total do passado como sendo o Bom. De minha parte, eu acrescentaria que não importa se é ou não, mas essa postura é precisamente o que permite capturar o máximo de elementos para dominar o seu passado e projetar futuros possíveis, numa vida cada vez mais consciente. Cada sujeito age conforme a sua vontade, e aquilo que não for "da vontade de Deus" não se conseguirá fazer, e o passado, de novo, será aceito plenamente e mais e mais tentativa de ordenar esse passado gera um futuro cada vez mais consciente e com ações precisas, portanto aumentam o poder e a liberdade de quem aceita o desafio da razão. Seja na versão sintética de Leibniz, seja na versão em nova linguagem do existencialismo espiritualista, a inteligência humana permite tudo isso em potência. Cabe a nós decidirmos se vamos ou não aceitar o desafio.
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Que fique claro que o tratado da inteligência tanto quanto as sentimentalidades filosóficas não se tratam de fenômenos nascidos a partir de um certo momento do tempo, mas, todas elas, são potências presentes no ser humano, mas que podem, conforme as circunstâncias da época, tornarem-se presentes. A presença dessas sentimentalidades é um sintoma grave para a necessidade de um recomeço socrático. À parte as sentimentalidades, há ainda as circunstâncias sociais que favorecem a perda da confiança na razão, abordadas no tratado da inteligência. Agora, porém, e pensando já na possibilidade de uma retomada da razão nas novas circunstâncias de excesso de produção de conhecimento, é possível, talvez discutir um pouco sobre os objetos do ser.
7.2- Objetos do ser
7.2- Objetos do ser
Saímos do estudo do Nous para entrar propriamente no estudo dos objetos do ser. Ora, os objetos do ser são todas as coisas, e mesmo o Nous: se faço a divisão é unicamente para facilitar o processo didático pela derivação das subcategorias, pois é possível adquirir uma imensa gama de conhecimentos sem nunca parar para tomar posse da própria inteligência em toda a sua potencialidade - não obstante, nunca se notará toda a ausência que essa falta desse autoconhecimento da razão sobre si própria acarretou. Com exceção, portanto, do Nous, comecemos com a investigação dos demais objetos do ser.
Podemos dizer que o conhecimento humano, do ser, começa e termina em uma mitologia, isto é, em um conjunto de narrativas. Conhecimento é a tentativa sucessiva de rotular e expressar as relações entre fenômenos naturais por meio do corpo humano. Os sons que nosso aparelho fonador tornam-se, assim, o veículo mais eficaz para a captação dessas relações - da linguagem oral até a sua versão mais estável no tempo, a linguagem escrita. No processo de juntar-se em grupos na tentativa de ampliar as chances de sobrevivência, o homem, então, passa a viver dois problemas: planejar a ação em conjunto e garantir que os descendentes que nascerem sejam capazes de manter esse acordo conquistado pelo bando. Como coloco o instinto de sobrevivência como o instinto central, natural, de onde a própria cultura e a religião se ordenam no homem, também aqui, portanto, essa circunstância se revela. Como diria Rosenstock-Huessy, o primeiro problema gera o nascimento da linguagem e é sobretudo o segundo que gera a mitologia e, com ela, o começo da explicação sobre a natureza e, por meio dela, sobre o ser. Comecemos, então, com a mitologia.
Mitologia
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