Fábulas
[Post resumido de outro mais amplo sobre imitação de escritores
Nenhum assunto é realmente difícil: basta perdemos o medo dele e, se formos apresentados a ele sem tanto alarde, tanto melhor. A questão da imitação de escritores eu prefiro tomar pelo caminho inverso que geralmente se faz: em geral, as pessoas enfatizam a imitação do estilo. O que eu proponho é que partamos do entendimento da mensagem até o desvelamento do estilo como os melhores recursos que o autor encontrou para expressar sua mensagem.
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As fábulas de Esopo são meu recurso favorito para explicar o funcionamento da inteligência perante uma narrativa. São narrativas curtas, sintéticas, mas poderosas: pérolas de sabedoria e enredos. Vamos a uns exemplos.
1) A raposa e o dragão [p.32]
Havia uma figueira no caminho; uma raposa, que vira um dragão dormindo à sua sombra, invejou o seu tamanho. Querendo igualar-se a ele, deitou-se ao seu lado e tentou esticar-se até que, exagerando em seu esforço, acabou por romper-se.
A 1ª coisa a fazer é esquecer a fórmula comum da fábula. Não pense em título-fábula-moral. O título é algo que cataloga a situação geral, mas sobretudo os animais envolvidos. A moral não é moral, mas a síntese da fábula. E a fábula é uma demonstração da síntese: pode ser tanto aquilo que gera a síntese como aquilo que é gerado pela síntese. A moral está para a fábula como o discurso poético está para o dialético (quase lógico), na tipologia dos 4 discursos do Olavo. Vamos à prática da imitação.
a) Construa uma narrativa análoga, similar, a da fábula. Pode ser contando uma história ou a partir de uma situação ou lembrança sua. Você já deve saber que a fábula usa animais para falar de situações humanas, então é muito simples, e a mente da gente é perfeitamente equipada pra fazer isso quase que automaticamente. Tente. Mas tente mesmo. Não existe erro ou acerto aqui, o máximo que existe é uma aproximação sucessiva dos detalhes.
Como não posso observar se vocês fizeram ou não o exercício, vou colocar abaixo dois exemplos de respostas, em fonte branca. Para ver, selecione a mensagem.
Ex.1: Bulimia. Uma mulher mais cheinha tinha inveja das meninas mais magras e queria a todo custo ser magra também, mesmo que não fosse propriamente gorda, menos ainda ruim de saúde. Assim, ela se obcecou com isso a ponto de que dietas e tudo o mais não adiantavam; começou a vomitar o que comia e a cada vez seu corpo ficava mais e mais fraco. Não emagreceu, mas adoeceu e, ainda no hospital, já à beira da morte, em nenhum momento se arrependeu: queria ser magra, era tudo o que podia pensar.
[ok, ficou exagerado]
Ex.2: [ok, essa é de safadeza] Um aluno de escola acompanhou Olavo no true outspeak. Vislumbrado, começou a imitar o Olavo. Algum tempo depois, ao entrar na universidade, decidiu agir como ele via o Olavo agir. Não conseguiu vencer nenhuma das discussões, passou a ser odiado entre alunos e professores. Não aguentou tanta pressão; desistiu do curso. Sem saber que outra coisa fazer, porque o curso era seu único interesse, perdeu-se em farras e bebedeiras, desnorteado.
Entendem o que é pra fazer? Um ponto que vale a pena mencionar. Esta fábula para imitar é problemática, porque ela mostra uma espécie tentando se aproximar da outra. Eu fiz exemplos com menos precisão: são duas pessoas da mesma espécie, mas em graus diferentes. Essa medida é também muito útil, porque de um lado ajuda na composição e de outro na compreensão dos matizes da fábula.
Vou passar mais uma fábula abaixo, sem deixar exemplos. Depois continuo o exercício.
2) A raposa e o cacho de uvas [p.31]
Uma raposa faminta viu uns cachos de uva pendentes de uma vinha; quis pegá-los mas não conseguiu. Então, afastou-se murmurando: "Estão verdes demais".
Nota: Perceba que a fábula tem um sentido ambíguo. Esqueça a moral. A fábula pode significar que a raposa se recusou porque estava difícil (e aí a moral oficialmente registrada aponta pra essa estrutura fabular), ou pode significar que a raposa preferiu procurar cachos que já estivessem maduros (a moral não cabe, aqui não é inveja, mas esperteza). Você pode experimentar ao compor suas analogias.
b) Agora o contrário: vamos da síntese ao exemplo. Esqueçam as narrativas, vamos focar na moral. Tentem dizer uma aprendizado ou ideia presente nas narrativas que criaram (ou nas que eu montei). A "Moral da história" é só isso: um aprendizado tirado daí. Se você experimentar dizer o aprendizado tirado das suas narrativas, vai ver que não vai ficar tão distante assim da moral (no máximo ela é uma paráfrase). A moral é mais do que essa conotação que ouvimos hoje: ela serve como uma síntese que pode gerar quantas narrativas você quiser. Vou colocar, em branco, as morais das duas fábulas. Espero que você tenha construído suas narrativas e se lembre delas para testar.
1) "Assim sofrem os que desejam igualar-se aos mais fortes; com efeito, eles próprios se prejudicam."
2) "Assim, também, alguns homens, não conseguindo realizar seus negócios por incapacidade, acusam as circunstâncias."
Tendo a fórmula vocês podem compor quantas histórias quiserem, e das mais diversas, como os exemplos demonstram. O que elas têm em comum é a estrutura geral, que é dada, ora ora, pela moral, ou o aprendizado ali presente. Assim, por exemplo, Dom Casmurro tem uma estrutura similar a do 3º episódio da 1ª temporada de Black Mirror, ou Hamlet tem uma estrutura parecida com o Rei Leão. Não necessariamente que são iguais, mas são parecidas o suficiente na estrutura. Por fora, porém, são narrativas distintas, e o que vai variar, portanto, entre uma e outra, é o estilo.
c) Estilo. O estilo é simplesmente a maneira como é representada essas narrativas. É algo que está presente em cada narrativa, mas que, se lemos em conjunto, podemos extrair ainda mais regras. Com Esopo a coisa é mais fácil. Vou exemplificar abaixo.
As duas narrativas que coloquei de exemplo a partir da 1ª fábula são completamente distintas, certo? Estilo é quando eu decido regras, ou personagens por exemplo, constantes, que viverão essas situações. Imagine que você vai compor uma série. Black Mirror, por exemplo. A regra dela é simples: eu quero compor situações, trágicas, que usem tecnologias avançadas. E aí se você pega as fábulas de Esopo, por exemplo, você tem a disposição umas trezentas narrativas, em que cada uma podia compor um episódio, por exemplo. (Claro que algumas se repetem, mas é só para ilustração). Você tem a estrutura do enredo: daí é só inventar personagens e uma tecnologia para ele.
E o estilo de Esopo? É simples. Existe mais do que isso, mas a marca geral dele é compor tudo com animais, e esses animais possuem umas regras fixas. A raposa é esperta e pode ser maliciosa; o burro é "burro"; o leão é forte etc.. Enfim, os animais possuem suas marcas, verossímeis com a espécie real.
Você pode compor enredos simplesmente definindo quais personagens quer juntar. Daí, por exemplo, os títulos. Para inventar alguns: "A raposa e a lebre", "a lebre e a tartaruga", "o burro e outro burro". Não é a forma mais fácil, mas é uma possibilidade.
Você tem que aprender a dar uma atenção mais abstrata às coisas. Por trás da narrativa existe uma estrutura que ela segue. Isso vale para novelas da Globo, desenhos infantis, animes, desenhos de heróis, filmes, séries, livros de literatura clássica. A regra de uma obra é ser fechada em si mesmo, e quanto mais seus elementos tiverem sido racionalizados e bem posicionados, mais perfeita é a obra.
Diga-se de passagem, uma das diferenças centrais de um autor de cultura industrial para um de alta cultura é que o industrial, tão logo arranja uma fórmula de sucesso, repete-a incansavelmente. Poderíamos dizer isso de Esopo, mas se examinamos suas fábulas, vemos que seu foco foi menos em gastar o estilo até o fim do que expressar todas as estruturas de enredos possíveis. A falta de repetição de uma estrutura entre as fábulas demonstra isso. Já One Piece, por exemplo, por mais que possa ser divertido, é uma narrativa levada até as últimas consequências, com personagens de padrão de ação já definido. Do mesmo modo, o autor de Black Mirror já esgotou a inventividade em tecnlogias e começou a se repetir. O estilo do autor bom vai ficando mais sutil, de modo que entre suas obras existe algo que as conecta, mesmo que sejam obras distintas, como é o caso do Machado de Assis: ele brinca o máximo com formas literárias, mas existe um modo particular de brincar com elas.
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Exemplo de caso contrário: tomar um enredo e transformar em fábula.
Os dois burros e a raposa
Certa vez um burro foi convencido por uma raposa de que, se quisesse, poderia vencer até mesmo um leão se lhe pisasse em cima, e, então, se tornaria o rei da floresta. A raposa preparou-lhe o momento para o ataque, enquanto o leão descansava sozinho. Na última hora, quando o burro saía de trás da moita, uma burrinha manca, que ouvira a conversa de ambos, se aproxima.
- Não - sussurra. - Não vês que teus pobres pés, como os meus, não são páreos nem para matar esta raposa?
O burro se apieda do mancar da burrinha que corria atrapalhada em seu socorro.
Mas a raposa se enfurece.
- Quem você acha que é, sua burra aleijada?
O burro, tomado de raiva, espanta a raposa com os pés. Ela se atrapalha e cai fora do arbusto, de frente para o leão. Este acorda e, bem servido, devora a raposa. Enquanto isso, fogem juntos o burro e a burrinha manca.
- Eu vou te ajudar, como você me ajudou - diz o burro.
Moral: Assim também somos tentados, pelo desejo de sermos mais do que somos, a fazer algo que nos destruirá.
A moral está sintetizando o enredo de crime e castigo. Há vários sub-enredos: a história do Marmeládov, o pai bêbado de Sônia, da esposa de Marmeladov, de Svidrigailov, da Dúnia, irmã de Raskolnikov, de Razumíkin etc.. Um romance é a somatória desses enredos de modo harmônico e, no bom romance, esses sub-enredos complementam também a "moral principal". Isto é, como no conto, tal como proposto por Edgar Allan Poe em sua filosofia da composição, mas menos rígido porque diluído, as partes são escolhidas para complementar o efeito de conjunto.
A fábula prescinde de todos esses elementos por mirar diretamente no alvo, isto é, a situação-raiz que forma essa mesma "moral" [o sentido abstrato da obra]. Tendo a fábula, dá pra se compor o conto ou o romance, e vice-versa.
Como nos casos mostrados acima, eu posso pegar uma situação, como, sei lá, "uma mãe solteira que larga os filhos para ir se divertir", ou o contrário "uma mãe solteira que se sacrifica para cuidar dos filhos", ou "o filho que se revolta com sua espécie por ser muito sexualizada e deseja ser superior" [mgtow], e assim sucessivamente. É possível inclusive inventar novos animais caso haja interesse: a vaca, por exemplo, que é mais passiva apesar de poder usar seu peso a seu favor [e come grama]; o touro pra representar a fúria quando se acumula; borboleta [como o patinho feio] é o clássico símbolo para representar transformação, e assim sucessivamente, conforme a criatividade do compositor. A gente sabe quais são os animais principais, então as invenções podem ser reconhecidas como "traços modernos", e isso também pode ser levado em conta na hora de inventar enredos.
Outra opção é pegar enredos nos quais você esteja trabalhando e adaptá-lo pra forma. Esse tipo de exercício ajuda inclusive a pensar em soluções pro seu enredo.
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